MARIO DE FRANÇA
MIRANDA
A REFORMA DE FRANCISCO
Fundamentos teológicos
EDIÇÕES PAULINAS
ÍNDICE
PREFÁCIO.......................................................................................................................
I. CONVERSÃO E REFORMA ECLESIAL
1. O projeto do papa
Francisco................................................................................
2. A unidade da fé
cristã...........................................................................................
3. A pluralidade presente na vida
cristã......................................................................
4. O imperativo da
conversão......................................................................................
II. O ESPÍRITO SANTO E A CONFIGURAÇÃO ECLESIAL
1. A ação do Espírito Santo em
vista do Reino de Deus na Escritura..............................
2. O Espírito Santo constitui a
comunidade eclesial.......................................................
3. O Espírito Santo e o Reino de
Deus........................................................................
4. O Espírito plasma a Igreja
institucional ao longo da história...................................
5. A configuração eclesial no Concílio
Vaticano II......................................................
6. A configuração eclesial na
América Latina..............................................................
7. A configuração eclesial do
papa Francisco........................................................
8. Uma configuração eclesial provinda
do Espírito Santo a partir da periferia?.........
III. A ALEGRIA DO EVANGELHO E SUA INCIDÊNCIA EM NOSSA IGREJA
A. O que nos ensina a
história......................
B. A igreja desejada pelo papa
Francisco...................
C. Uma Igreja missionária e
descentrada..................
D. Uma Igreja configurada
colegialmente..................
E. Uma Igreja
inculturada....................................
F. Uma Igreja de discípulos
missionários..............................
G. Uma Igreja que testemunha na vida sua fé em
Jesus Cristo...................
H. Uma Igreja dos
pobres.............................
IV. REFORMA ECLESIAL E MÍSTICA DA FÉ
1. A mística da fé: coração da
reforma eclesial de Francisco..................
2. A teologia subjacente aos
pronunciamentos do papa Francisco.........
A. A concepção cristã do ser
humano................
B. A fé como resposta do ser
humano à autodoação de Deus.........
C. Fé, mística e
teologia..................
D. Sentido da fé e religiosidade
popular....................
V. LAUDATO SÌ: UMA ABORDAGEM TEOLÓGICA
1. A cultura dominante em nossos
dias...............................
2. O mundo criado à luz da fé
cristã................................
3. Fé cristã e ecologia.....................................................
VI.
INSTITUIÇÃO E INDIVÍDUO NA REFORMA ECLESIAL DE LUTERO E DE FRANCISCO
1. A questão de fundo: fé pessoal e
instituição eclesial..................
2. A reforma de Martinho
Lutero.............................
3. A reforma de
Francisco............................................
4. Uma reforma
ecumênica?........................................
VII.
EVANGELIZAR HUMANIZANDO?
1. Os desafios
atuais..................................................
2. Pressupostos teológicos.......................................
A. Jesus e o Reino de
Deus....................................
B. A distinção entre fé e
religião.............................
C. O cristianismo como realidade
simbólica...............
3. Uma Nova Evangelização...................................
A. O humano
cristão...........................................
B. A Missão
atual.........................................
C. Mudanças que
urgem..................................
VIII. A
HERANÇA INACIANA DE FRANCISCO
1. Uma espiritualidade marcada pelo contínuo
discernimento................
2. Discernimento e vida
cristã....................
3. Uma concepção da vida
cristã.......................
4. O modo de proceder do papa
Francisco..........................
5. A missão de
evangelizar.....................................
6. A tensão entre palavra e
vida...............................
7. O discernimento
espiritual.....................................
8. O respeito ao ser humano em
sua realidade.......................
CONCLUSÃO..........................................................................
PREFÁCIO
Sempre me impressionou o
frequente pedido do papa Francisco para que rezássemos por ele. Sem dúvida, uma
solicitação habitual naqueles que são investidos de alguma responsabilidade na
Igreja, ou mesmo na sociedade. Mas, aos poucos, fui me convencendo que a
frequência e a sinceridade dos repetidos pedidos por parte do papa Francisco
revelavam que ele enfrentava uma dura batalha pela reforma da Igreja.
Combatiam-no não só opositores de dentro da instituição eclesial, mas também
pessoas e entidades da atual sociedade que se sentiam ameaçadas por seus
pronunciamentos em favor da paz, do diálogo, da justiça, da misericórdia, numa
palavra, em favor da vida humana tão desvalorizada em nossos dias. Pensemos nos
lucros exorbitantes conseguidos pela produção e exportação de armas que
necessitam das guerras para ser vendidas, ou no comércio
de pessoas humanas, talvez o negócio mais rendoso em nossos dias. O chamado à
solidariedade e à ajuda em face dos mais fracos e marginalizados incomoda, sem
dúvida, todos aqueles que sucumbiram ao domínio do individualismo, sejam eles
indivíduos ou mesmo países.
Mas a resistência pode ser
constatada também no interior da própria Igreja. Pois a reforma de Francisco
desinstala muitos de sua mediocridade cinzenta, ameaça outros em sua ânsia de
poder, desmascara a vaidade de alguns, perturba hábitos adquiridos,
mentalidades estreitas, mentes inseguras, desorienta os que se contentavam com
uma fé tradicional, mais cultural do que autêntica. E a razão é simples.
Trata-se de uma volta ao Evangelho que na sua simplicidade exige mais do que
somente práticas e mentalidades recebidas do passado. E a Palavra de Deus não
só nos ilumina e fortalece, mas também nos interpela, questiona, desinstala. E
a própria fé é dom que Deus nos oferece, mas que deve ser acolhida consciente e
livremente para estruturar realmente nossa vida. E a opção de fé numa sociedade
pluralista e secularizada já não é tão simples como no passado.
Francisco, por sua vez, pede que
sejamos abertos ao sopro do Espírito Santo, que não temamos os novos caminhos
que Ele nos indica, que saibamos escuta-lo e segui-lo sem reduzir nossa vida
cristã a repetir práticas e obedecer a normas externas. Não nos deve admirar
que as resistências provenham, sobretudo, dos que gozam de poder, seja pelos
seus conhecimentos, seja pelos cargos que ocupam. Pois também Jesus Cristo
experimentou a maior resistência à sua mensagem por parte dos sabidos fariseus
e das políticas e espertas autoridades religiosas de seu tempo.
A reforma de Francisco não pode ser
levada adiante por uma única pessoa. Ela diz respeito a todos nós, que somos
cristãos, que somos Igreja, que estamos incumbidos por Deus de levar adiante o
projeto de Jesus Cristo para a humanidade. Deus conta conosco! Para conseguir este objetivo devemos nos
familiarizar com as ideias-força deste papa, conhecer seus pronunciamentos,
aprofundar suas intuições. Só assim poderemos comunicar toda esta riqueza aos
outros, como colaboradores ativos neste momento tão importante da história da
Igreja.
Deste modo fica claro o objetivo
destas páginas, a saber, apresentar e fundamentar alguns componentes da reforma
empreendida por Francisco. Num primeiro capítulo aparece já a necessidade de
uma conversão sincera ao Evangelho
que nos liberte do apego a práticas do passado e nos leve a aceitar a novidade
e a diversidade no interior da Igreja. Em seguida será enfatizada a ação
constante do Espírito Santo na
comunidade, o qual lhe recordará a pessoa de Jesus Cristo e sua luta pelo Reino
de Deus, devendo, portanto também sua configuração institucional corresponder a
tal objetivo. No capítulo seguinte será examinado o impacto da Exortação
Apostólica A Alegria do Evangelho na
Igreja do Brasil, demarcando assim suas metas pastorais futuras. O quarto
capítulo aborda um ponto central na reforma do papa Francisco, a saber, a fé
vivida proporciona uma experiência
mística com Deus, uma experiência deveras decisiva numa cultura
secularizada, uma experiência que encontramos na religiosidade popular de nossa
gente.
O capítulo quinto busca oferecer
a fundamentação teológica da importante Encíclica Laudato Sì. Numa cultura dominada pelo individualismo e pelo
consumismo desenfreado com irrecuperáveis consequências para os limitados
recursos da natureza, o texto papal demonstra não só amplo conhecimento da
questão, mas também como ela deve ser vista numa perspectiva cristã, que
considera igualmente a repercussão desse descalabro nas populações mais pobres
do planeta, introduzindo assim a noção de uma “ecologia integral”. Em seguida,
por ocasião do quinto centenário da reforma luterana, se examina de onde brota o
empenho reformador de Lutero e de Francisco ao afirmarem a importância do indivíduo cristão diante da instituição,
pleiteando mudanças na mentalidade e nas estruturas eclesiais. O capítulo
sétimo busca refletir teologicamente sobre a importância do testemunho de fé
numa época em que as linguagens tradicionais pouco dizem à sociedade. Tal
testemunho de vida aponta para a dimensão
profundamente humana da mensagem cristã que tem significativo impacto em
nossos contemporâneos como comprova a repercussão deste atual pontificado.
Finalmente se abordam as raízes da espiritualidade
de Santo Inácio de Loyola no modo de proceder de Francisco, que não se
contenta com princípios gerais, mas leva seriamente em consideração a pessoa
concreta em seus condicionamentos e limitações, urgindo assim um necessário
discernimento para um consequente juízo e decisão.
Como afirmamos no início: esta
reforma não é só do papa Francisco. Também nós somos Igreja, também cada um de
nós deve contribuir para a mesma. Portanto, se estas páginas conseguirem que
seus leitores se envolvam e se comprometam com essa reforma já terão alcançado
seu objetivo.
Uma reforma eclesial
sempre questiona hábitos passados, compreensões tradicionais, formulações
familiares. Sentimo-nos incomodados por ter que lidar com realidades,
expressões e práticas novas. Experimentamos também certa insegurança diante do
que nos é proposto, como se nossa fé estivesse ameaçada por estes novos
desafios. Pois nos acostumamos a experimentar certa uniformidade na vida da
Igreja e as mudanças sempre demandam esforços de adaptação. Por outro lado,
reconhecemos que determinadas tradições vigentes na Igreja pouco correspondem à
mensagem evangélica e que deveriam ser corrigidas ou eliminadas. Não nos deve,
portanto, admirar que o Papa Francisco desperte alegria e entusiasmo por parte
de muitos, mas igualmente provoque resistências por parte de outros.
O longo passado da
Igreja nos ensina que as épocas de renovação ou reforma eclesial foram tempos
agitados por atingirem mentalidades e comportamentos já profundamente
assimilados pelas gerações anteriores. Em nossos dias este fato é agravado por
vivermos numa cultura marcada por transformações aceleradas, que acabam por
gerar uma instabilidade permanente e uma busca por referências sólidas e
confiáveis. Neste contexto a Igreja aparece como uma instância que oferece
orientação e sentido para enfrentar tal situação. Deste modo, mudanças na
Igreja significam para alguns ver questionados seus pontos de apoio.
Não podemos negar por
parte de alguns uma concepção estática da Igreja, avessa a qualquer
transformação na mesma, demonstrando deste modo um desconhecimento patente da
sua história, já que tais transformações sempre a acompanharam no curso dos
séculos. Por parte de outros, a dificuldade com a renovação pode provir das
vantagens e benesses que a Igreja do passado lhes proporcionava, já que não
querem de modo algum perdê-los.
Toda a atual situação
criada pela iniciativa do Papa Francisco pede uma reflexão mais profunda que
ofereça critérios para um juízo sadio da mesma, que desmascare igualmente concepções
e estilos de vida que nada tem de cristãos, que aponte em que pontos todos nós
devemos experimentar uma autêntica conversão.
Só assim poderemos dar nossa contribuição, já que todos nós somos Igreja, à
necessária reforma eclesial, já iniciada no Concílio Vaticano II, e corajosamente
assumida pelo atual pontífice.
1. O projeto do Papa Francisco
Naturalmente não
pretendemos resumir em algumas linhas o projeto do Papa Francisco para a
reforma da Igreja, mas apenas indicar alguns pontos do mesmo que podem explicar
certas resistências por parte de alguns, certos temores por parte de outros,
embora seu programa (EG 25) venha recebendo uma acolhida positiva entre grande
parte do Povo de Deus. Constante nos pronunciamentos deste Papa é a exigência
de conversão por parte dos membros da Igreja, que aparece assim como condição necessária para uma pretendida
reforma eclesial. Sejam as resistências, sejam os apelos à conversão, nos
indicam a urgência de abandonarmos hábitos e mentalidades ainda em vigor e
abraçarmos com mais generosidade o que nos pede o Evangelho. Os pontos
indicados mais abaixo não esgotam a questão e certamente refletem uma opção certamente
subjetiva, mas são suficientes para o objetivo destas linhas.
A) Partir
do núcleo da fé cristã
O
Papa Francisco insiste em que a Igreja proclame o “coração da mensagem de Jesus
Cristo” (EG 34) que consiste na “beleza
do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado”
(EG 36). Daí poder afirmar que “o Evangelho convida, antes de tudo, a responder
a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos
para procurar o bem de todos” (EG 39). Esta mensagem animadora deve ser pregada
para que a todos possa “chegar a consolação e o estímulo do amor salvífico de
Deus” (EG 44). E o Papa se apoia em Santo Tomás de Aquino que afirmava ser a
graça do Espírito Santo manifestada na fé que opera pelo amor o elemento
principal da Nova Lei, sendo a misericórdia a maior de todas as virtudes (EG
37). Daí sua clara afirmação: “A Igreja é chamada, em primeiro lugar, a ser
verdadeira testemunha da misericórdia, professando-a e vivendo-a como o centro
da Revelação de Jesus Cristo”[1]. Eis
aqui uma verdade fundamental para entendermos de onde brota um novo modo de
atuação da Igreja na mente deste Papa.
B) Enfatizar
a fé vivida
Herdamos
uma Igreja ainda com nítidas características da época da cristandade: cultura
cristã generalizada, batizados não evangelizados, separação entre fé cristã e
vida pessoal, ênfase nas formulações doutrinais e exigência no cumprimento de
normas morais que, para muitos, deformavam a imagem da Igreja como sacramento
da salvação, vendo-a sobretudo como uma entidade autoritária, moralista,
demasiado segura de suas verdades e, de certo modo, distante da dura realidade
vivida por seus filhos. Naturalmente o Concílio Vaticano II desencadeou grandes
mudanças neste particular. Mas para este Papa ainda há muito a ser reformado.
O
perigo aqui é cair na tentação de reduzir a fé cristã a uma religiosidade ou a
um consumismo espiritual de cunho individualista, com uma adesão a Cristo sem o
compromisso pelo outro (EG 89). Mesmo reconhecendo a importância da doutrina,
não podemos isolá-la do núcleo do Evangelho sob pena de cairmos em opções
ideológicas (EG 39), de nos omitir diante de situações intoleráveis de
injustiça (EG 194) ou de nos prender a uma formulação que não transmite a
substância da mensagem (EG 41).
“A
realidade é superior à ideia” e desmascara “os purismos angélicos, os
totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projetos mais
formais do que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem
bondade, os intelectualismos sem sabedoria” (EG 231). No fundo está o que este
Papa caracteriza como “mundanismo espiritual” (EG 93), autocentrado,
prisioneiro de sua razão ou dos seus sentimentos, achando-se superior aos
demais, seguro de si mesmo, pronto para julgar os outros, revivescência do
farisaísmo e degeneração do cristianismo (EG 94). É daí que nascem as divisões
e os ataques mútuos por parte de cristãos e de grupos no interior da Igreja (EG
98). Ainda poderíamos acrescentar o “cuidado exibicionista da liturgia, da
doutrina e do prestígio da Igreja”, o fascínio do poder, a autocomplacência
egocêntrica (EG 95). Então entendemos sua exclamação: “Deus nos livre de uma
Igreja mundana sob vestes espirituais ou pastorais!” (EG 97).
C) Aceitar
a pluralidade na Igreja
Uma Igreja “em saída”
(EG 46), uma Igreja “com as portas abertas” (EG 47), uma Igreja com “o olhar do
Bom Pastor, que não procura julgar, mas amar”, é uma Igreja que percebe a
complexidade plural da realidade humana e social. Já que todo ser humano é
também um ser cultural, sempre inserido num contexto sociocultural onde se
desenvolve como ser humano, a ação salvífica de Deus deve ser por ele captada
para ser aceita e vivida. Portanto, “a graça supõe a cultura, e o dom de Deus
encarna-se na cultura de quem o recebe” (EG 115). A história do cristianismo
nos atesta que esse “não dispõe de um único modelo cultural”, “que não faria
justiça à lógica da encarnação” (EG 117), mas assume o rosto das diversas
culturas, exprimindo assim a catolicidade da Igreja e enriquecendo-a com “novos
aspectos da revelação” (EG 116) “ou da riqueza inesgotável do Evangelho” (EG
40). Pois, enquanto missionária, deve a Igreja “crescer na interpretação da
Palavra revelada e na sua compreensão da verdade” (EG 40). Pela mesma razão
deve recusar “uma doutrina monolítica defendida sem nuances por todos” (EG 40)
e renovar sua linguagem na transmissão da fé, já que, nas palavras de João
Paulo II, “a expressão da verdade pode ser multiforme” (EG 41).
A diversidade cultural
não rompe a unidade da Igreja. Pois nela atua constantemente o Espírito Santo
“que suscita uma abundante e diversificada riqueza de dons e, ao mesmo tempo,
constrói uma unidade que nunca é uniformidade, mas multiforme harmonia que
atrai” (EG 117). Esta ação do Espírito supõe pessoas que não fiquem confinadas
em seus próprios horizontes (EG 226), mas saibam “suportar o conflito,
resolvê-lo e transformá-lo no elo de um novo processo” (EG 227). Esta “comunhão
nas diferenças” implica ascender a uma “unidade multifacetada” de um “plano
superior que conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em
contraste” (EG 228). Cada um dos implicados no conflito deve reconhecer que
representa apenas parcialmente a verdade da fé, que essa só é adequadamente
professada por toda a Igreja e que também esta última jamais esgotará o
mistério de Deus reduzindo-o a categorias humanas[2].
Como vemos não só a unidade prevalece sobre o conflito, mas também o todo é
superior à parte. Trata-se de conservar sua identidade, mas sabendo abrir-se
para a diversidade alheia que lhe dará maior desenvolvimento (EG 235).
D) Ousar novos caminhos
As transformações
socioculturais que experimenta hoje a sociedade pedem da Igreja em sua missão
evangelizadora que ela saiba transmitir sua mensagem salvífica de modo condizente
com os problemas, os desafios, as inquietações atuais. Não basta repetir
soluções passadas para questões que já desapareceram. Faz-se necessário vencer
o medo do novo para não nos deixarmos “encerrar nas estruturas que nos dão uma
falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos
hábitos em que nos sentimos tranquilos” (EG 49). Pois “sempre que procuramos voltar
à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas,
métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras
cheias de renovado significado para o mundo atual. Na realidade, toda a ação
evangelizadora autêntica é sempre nova” (EG 11).
Daí o apelo do Papa:
“Convido todos a serem ousados e criativos nesta tarefa de repensar os
objetivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores das respectivas
comunidades” (EG 33). Naturalmente este apelo nos desinstala de costumes e
representações familiares e nos lança na aventura de confiarmos no Espírito
Santo “permitindo que Ele nos ilumine, guie, dirija e impulsione para onde Ele
quiser. O Espírito Santo bem sabe o que faz falta em cada época e em cada
momento” (EG 280).
Não nos deve
surpreender que alguns católicos resistam a este apelo do Papa Francisco.
Procuramos indagar sobre a raiz das tensões e dos conflitos sempre presentes na
história da Igreja e pareceu-nos poder ser expressa na dialética da unidade da
fé cristã e na pluralidade de suas expressões. Abordaremos, portanto, primeiramente
a unidade da fé, salvaguarda de sua
identidade e de sua verdade. Numa segunda parte veremos como esta unidade
experimentou e ainda experimenta uma inevitável pluralidade em sua compreensão e em sua expressão sem sacrificar
sua verdade. Enfim, numa última parte, examinaremos porque as tensões e os
conflitos que hoje constatamos urgem uma adequada e devida conversão. Então poderemos melhor compreender não só a resistência
de alguns, mas também os apelos por conversão da parte do Papa Francisco.
2. A unidade da fé cristã
O ato de fé consiste
na resposta humana à iniciativa livre de Deus de se doar ao ser humano para que
este possa participar de sua felicidade eterna. Portanto a fé é o acolhimento
da oferta salvífica de Deus, oferta esta que é o próprio Deus. Assim o ato de
fé se dirige a Deus, goza de uma intencionalidade própria que vai além de
enunciados e proposições, embora seja por estas orientada. Este Deus
inacessível, transcendente, mistério permanente para o ser humano se revelou
através de Jesus Cristo, a Palavra de Deus, a manifestação de Deus como Pai.
Portanto a fé em Deus não é simplesmente a fé numa realidade infinita,
onipotente e omnisciente, mas no Deus de Jesus Cristo, no Deus revelado em suas
palavras e ações que são desdobramentos na história da única Palavra de Deus,
embora, enquanto Deus, também Cristo é mistério para o ser humano.
Não sendo uma opção
cega a fé goza de certa luminosidade que lhe é intrínseca, mas, por tender a uma meta sempre inacessível,
busca sempre compreender melhor o Mistério que lhe vem ao encontro e é por ela
acolhido (fides quaerens intellectum). Daí o desdobramento plural do
extremamente simples que é Deus nos dogmas de fé, como explicitações e
aprofundamentos da única verdade para a qual tende a fé cristã. Importante aqui
é observar que todo discurso sobre Deus tem aqui o seu fundamento, pois tal
discurso deve arrancar sempre desta experiência salvífica primeira, a saber, de
acolher este dinamismo voltado para Deus que se entrega ao ser humano e o atrai
para si.
Naturalmente a
autodoação de Deus ao que crê enquanto meta para a qual foi criado, enquanto
realiza o sentido último de sua vida, enquanto implica uma experiência de amor
que é o próprio Deus, é de certo modo
captada pelo fiel. Trata-se mais de uma consciência do que propriamente de um
conhecimento explícito. Em cada cristão esta consciência de fé se encontra
limitada e a plenitude desta fé pode ser encontrada somente na fé comum de toda
a Igreja. Trata-se da eclesialidade da fé cristã. Se ela é teologal em seu
objeto, por se dirigir ao próprio Deus, em sua modalidade ela é eclesial pois é
a Igreja que garante a autenticidade de meu ato de fé. A fé do indivíduo é
sempre uma participação na fé da Igreja. Entretanto esta mediação eclesial não se
interpõe entre o fiel e Deus, pois nela e por ela Deus se doa imediata e
diretamente ao que crê.
Mas também a Igreja
enquanto comunidade de fé, embora tenha em seu conjunto a garantia de não se
enganar em questões de fé e de costumes (LG 12), embora transmita a outras
gerações tudo o que crê (DV 8), pelo fato de que sua fé se dirige ao mistério
de Deus, ela experimenta um crescimento na compreensão tanto das coisas como
das palavras transmitidas, de tal modo que pôde ser afirmado no Concílio
Vaticano II que a Igreja “no decorrer dos séculos tende continuamente para a plenitude da verdade divina” (DV 8).
Embora tenda para a
plenitude da verdade cristã que é Cristo e que implica a sua ressurreição,
quando então teremos a revelação de Deus na totalidade da história da fé, é a
Igreja que abrange a totalidade da fé cristã. “Só a Igreja total vive a fé total”[3]. É
ela que conserva a memória do evento salvífico de Cristo conservado em sua
tradição. É ela que oferece ao cristão a linguagem que ilumina sua fé e a
modalidade de vida que caracteriza o discípulo de Cristo. É ela que se mantém a
mesma através dos séculos pela ação do Espírito Santo, fonte das mesmas
experiências básicas partilhadas pelos fiéis. Portanto a verdade da fé se
manifesta em seu caminhar ao longo da
história, vetando assim qualquer sistema que pretendesse se equiparar à
autêntica ortodoxia[4].
Afirmação importante,
pois desacredita qualquer tentativa de aprisionar
a fé numa compreensão ou numa formulação de determinada época, impedindo que a
riqueza da fé possa melhor transparecer nas ulteriores complementações e
aprofundamentos. Porque esta tensão para o mistério é o que une todos os fiéis,
cada um comungando com os demais a partir de sua limitada e pessoal experiência
de fé. Portanto uma unidade aberta ao mistério de Deus manifestando-se no curso
da história humana, mas cuja plenitude ultrapassa as diversas realizações
históricas, impedindo que a verdade una seja definitivamente encerrada numa
determinada forma cultural ou histórica.
3. A pluralidade presente na fé cristã
A ação salvífica de
Deus na doação do Filho e do Espírito Santo à humanidade só chega a seu
objetivo quando é reconhecida como tal na aceitação livre, na opção de fé, por parte
do ser humano. Pois Deus se revela em fatos históricos e palavras que só são
revelação de Deus enquanto recebidos na
fé por ação do Espírito Santo. Entretanto não existe ser humano em geral,
já que este sempre se encontra no interior de um contexto sociocultural e
histórico. Portanto o gesto divino deve ser entendido e acolhido por homens e
mulheres em sua própria cultura.
A cultura é
fundamental para o ser humano ao lhe oferecer um quadro de referência, uma
visão da realidade, uma resposta à sua busca de sentido, ao mesmo tempo que lhe
indica padrões de comportamento que possibilitam sua vida em sociedade. Ao
acolher a Palavra de Deus esta será necessariamente entendida e vivida como tal
no interior de uma cultura determinada. E como toda cultura significa uma determinada
perspectiva de leitura da realidade, como toda cultura enfatiza alguns pontos
deixando outros na sombra, como toda cultura invariavelmente interpreta o que
recebe em suas expressões e em suas práticas, a revelação divina só pode se realizar
como tal já concretamente inculturada.
E por se tratar do
Mistério de Deus, que não pode ser expresso plenamente por cultura alguma, as
expressões e práticas condizentes com um contexto sociocultural deverão estar abertas para expressões e práticas de
outras culturas. Esta afirmação vale não apenas sincronicamente, mas também
diacronicamente, já que as culturas são grandezas históricas que sofrem
continuamente transformações motivadas por fatores endógenos ou exógenos. Importante
aqui é ressaltar que, embora diversificada em suas respectivas linguagens,
trata-se da mesma opção de fé
dirigida ao Mistério de Deus doado e revelado em Jesus Cristo no Espírito
Santo. Pois o gesto divino é transcultural, não é produto de cultura alguma, antes
é a realidade que faz as culturas se transcenderem para além de si mesmas. Pois
Deus em sua autodoação atinge todos os seres humanos, recebendo expressões
diversas em outras culturas ou mesmo em outras religiões, embora a mesma se revele
plena e definitivamente na pessoa e na vida de Jesus Cristo.
E como as culturas são
sempre realidades limitadas e sujeitas a transformações, devem elas estar
abertas a outras culturas que as complementam e aperfeiçoam. O mesmo nós podemos afirmar das expressões
inculturadas da fé cristã, que podem e devem se complementar enriquecendo assim
a mensagem salvífica enquanto entendida, expressa, e vivida em outras perspectivas.
E a história do cristianismo, sobretudo no primeiro milênio, nos atesta a
unidade da fé na diversidade de variados contextos socioculturais, pois unidade
não equivale a uniformidade.
Só pode existir uma
autêntica comunidade onde os indivíduos que a constituem passam por
experiências comuns, por compreensões comuns da realidade, por juízos comuns
sobre a mesma e finalmente por compromissos comuns assumidos. Esta afirmação
vale também para a Igreja enquanto a mesma é também uma realidade humana e
social. Portanto seus membros ao acolherem na fé a mensagem evangélica dispõem
de um horizonte de compreensão peculiar aberto pela vida e pela pessoa de Jesus Cristo. Este lhes
permite experiências, compreensões, juízos e compromissos comuns[5].
Porém, como vimos, esta fé cristã se é transcultural por um lado, por outro deve
ser entendida e vivida nas diversas culturas se quiser salvaguardar sua
pertinência salvífica e possibilitar a constituição de comunidades cristãs por
todo o mundo. Com outras palavras, o horizonte da fé deverá estar ao alcance dos membros de uma
determinada cultura, o que só acontecerá se já tiver nela inserida; caso
contrário permanecerá como um objeto estranho sem incidência na vida real das
pessoas. A inculturação da fé é mais um argumento para a inevitável pluralidade
no interior da Igreja, que não é de modo algum enfraquecido ou suprimido pelo
fenômeno da globalização como nos evidencia o ressurgimento e a ênfase atual
nas culturas locais[6].
Porém ainda no
interior de uma mesma cultura podemos encontrar outras diferenciações que
originam novos pluralismos. Pois o contato e o conhecimento de outros âmbitos
do saber fazem com que o senso comum, patrimônio de todos num determinado
contexto sociocultural, experimente modificações e ampliações que devem ser
levados a sério na tarefa evangelizadora. Pensemos nos que tiveram acesso ao mundo
da ciência, da história, da arte, da filosofia ou da teologia. Neste caso,
representações e expressões tradicionais podem ser incompreendidas e até
ridicularizadas por pessoas que gozam de uma consciência mais diferenciada e
mais crítica pela formação que tiveram.
4. O imperativo da conversão
A pluralidade enquanto
tal não constitui uma realidade negativa que deveria ser evitada. Primeiramente,
como já vimos, por se tratar de uma ocorrência inevitável dada a diversidade de
contextos socioculturais e de situações históricas e existenciais que apresenta
a humanidade. Mas também porque esta pluralidade pode apresentar uma
característica positiva enquanto
enriquece a compreensão da realidade pela diversidade das perspectivas de
leitura, mesmo que tenhamos que reconhecer que jamais alcançaremos uma
inteligência total e exaustiva (seria o saber absoluto) da mesma. Portanto quem
compreende sempre o faz no interior de seu horizonte particular de leitura, o
qual ilumina certos pontos da realidade e deixa outros desconsiderados. Daí que
essa sua compreensão deve estar aberta para ser complementada por outras
resultantes de outras perspectivas. A compreensão resultante não nega a
anterior, mas a “supra assume” (aufheben) numa compreensão mais ampla e
profunda. Deste modo uma pessoa pode manter sua adesão à fé cristã, embora goze
de uma melhor inteligência pelas aquisições posteriores de sua formação
religiosa.
Porém nos deparamos
também com certas interpretações diferentes na compreensão do ser humano, na
natureza do conhecimento, na visão da história, na explicação de fatos da
natureza que são e permanecem opostas e conflitivas. Vistas mais de perto,
constatamos que tais diferenças têm sua origem nos diversos horizontes que precedem
e condicionam a compreensão. Pois,
muitas vezes aqueles que habitam seus mundos culturais e deles se servem para
emitir seus juízos, não tem dos mesmos uma consciência clara e explícita. Deste
modo permanecem prisioneiros de uma determinada estrutura mental, julgando-a
como a única verdadeira e rechaçando qualquer transformação possível.
Constatamos este
estado de coisas naqueles que consideram a verdade como uma realidade fixa,
imune ao tempo, eterna, concepção esta que poderíamos chamar de clássica[7].
Seus juízos sobre a realidade são universais e não admitem alternativos. Porém
sabemos hoje que todo conhecimento humano é conhecimento interpretado no
interior de um horizonte de compreensão. Portanto, a verdade é uma realidade
que vai se desvelando ao longo da história, pois o seu conhecimento acontece
necessariamente no interior de um horizonte que é sempre parcial, histórico,
aberto a novos insights, que a enriquecem sem eliminar as aquisições passadas.
Assim a mesma ação
salvífica de Deus enquanto recebida na diversidade dos que creem explica a
diversidade de expressões da mesma, como podemos constatar no Novo Testamento
com cristologias, pneumatologias e eclesiologias diversas que se complementam
sem se excluírem[8].
A própria história do cristianismo aponta para expressões plurais de cunho
doutrinal, litúrgico, pastoral e organizativo, refletindo
assim os diferentes contextos e seus respectivos horizontes. Mesmo as
dissenções presentes na história do cristianismo foram fortemente influenciadas
pelo aspecto cultural, embora não exclusivamente[9].
De fato, enunciados só
tem significação no interior de um contexto. E como estes são históricos e
sujeitos a transformações deve o enunciado ser captado e expresso diversamente.
Assim o dogma de fé enquanto enuncia corretamente uma verdade revelada
atravessa os séculos, porque sua origem é o próprio Deus. Mas enquanto essa
verdade pode ser melhor compreendida e formulada no interior de outro horizonte
de compreensão, pode então experimentar um desenvolvimento devido a novas
perspectivas de leitura que a enriquecem e potencializam para outras gerações sua
força salvífica.
Uma das razões
responsáveis pela resistência que encontramos na Igreja com relação a mudanças
estruturais e novas interpretações da fé está na dificuldade em transcender o seu próprio horizonte de
compreensão por parte de alguns na Igreja. Aqui se impõe uma verdadeira conversão de cunho intelectual que
aceite a historicidade da verdade e a dimensão interpretativa do conhecimento
humano[10].
Por vezes a novidade está na recuperação de compreensões da verdade revelada,
esquecidas posteriormente pela Igreja e então repristinadas, como aconteceu no
Concílio Vaticano II com a rica contribuição da época patrística. Já Joseph
Ratzinger se perguntava se por detrás de certas separações entre os cristãos
não estariam apenas diferenças de cunho pessoal ou cultural que se apresentam
como essenciais sem o serem de fato[11].
Naturalmente a
resistência a novas e atualizadas visões da fé cristã pode provir da insegurança diante do novo, sobretudo
numa época de transformações rápidas e sucessivas como a nossa. A religião
aparece assim como um baluarte seguro e firme, sempre o mesmo, sobranceiro às
convulsões da sociedade. Nesta conjuntura florescem tanto o tradicionalismo
como o fundamentalismo. Como a causa deste fenômeno não é apenas de cunho
intelectual, voltaremos a ele mais adiante.
Outra fonte de
divisões e conflitos, além desta que vimos anteriormente, ocasionada pela
diversa estrutura mental, consiste na tendência inerente à natureza humana de
não perder o que lhe traz satisfação, de conservar o que lhe assegura paz e bem-estar,
de garantir o que lhe é mais familiar, de assegurar conquistas passadas, de se apegar
a hábitos e costumes gratificantes. Naturalmente qualquer mudança que ameace
sacrificar o atual status quo ou
imponha a introdução de novos hábitos, sobretudo se exigem renúncias e provocam
limitações ao bem-estar pessoal, não será de modo algum benvinda. Movido pela
busca de satisfação pessoal o ser humano é fortemente inclinado a julgar as
coisas pelas vantagens que lhe aportam. Não nos deve espantar que aqueles, pelo
cargo que ocupam, gozam de autoridade na sociedade ou na Igreja, mas dela fazem
uma instância de poder pessoal, sejam exatamente os primeiros a oferecer
resistência às transformações que se impõem na sociedade ou na Igreja. Pois
estas os desinstalam de seus hábitos, limitam seus poderes, urgem que desfaçam
certas alianças com o poder e o dinheiro, contrariam suas tendências e suas
preferências. Mesmo sem pretender generalizar um juízo de valor, não deveria
nos surpreender que certa resistência às mudanças desejadas pelo papa
Francisco, embora despertem entusiasmo na maioria dos católicos, sejam vistas
criticamente por alguns membros da hierarquia eclesiástica.
Neste caso se impõe
uma outra modalidade de conversão, a saber, a conversão moral. Esta consiste em nortear nossas decisões e nossas
escolhas não movidos pela satisfação própria, mas tendo como critério os valores que fundamentam nossa
escolha. Não pretendemos entrar aqui nas resistências e mesmo agressões que
experimenta o papa da própria sociedade[12]. Podemos
formulá-lo de vários modos: buscar em tudo a glória de Deus, promover a vinda
do Reino de Deus, comprometer-se pelo bem comum, lutar pelos mais pobres, viver
com honestidade. Tarefa difícil em nossos dias pela influência do individualismo
cultural na sociedade, fonte de tanta corrupção, violência e desigualdade
social. Diante de um quadro mundial preocupante aqui se situa o apelo do Papa
Francisco em prol da misericórdia, concretização oportuna da conversão moral.
Entretanto mais
importante que as duas precedentes é a conversão
do coração. Esta toca a afetividade profunda da pessoa que responde a Deus
que é amor (Rm 5,5) e doação de si, procurando fazer de sua vida também uma
doação a Deus na pessoa do próximo (Mt 25, 31-46). Mais do que um ato consiste
num dinamismo prévio aos atos que
dele brotam. Neste sentido é o fundamento que motiva e leva à conversão
intelectual e moral. Ela está presente e atuante no próprio ato de fé se o
consideramos uma resposta de amor ao amor primeiro de Deus. Enquanto tal ela
envolve toda a pessoa, transformando-a em nova criatura, capacitando-a a ver
com outros olhos a realidade, estimulando suas opções, unificando sua
existência. Consiste num entregar-se na fé ao Mistério de Deus e à ação livre
do Espírito Santo em nossas vidas. Mas não é um objetivo fácil de alcançar,
pois consiste numa conquista que envolve toda a existência[13].
Tendemos sempre a buscar nossos interesses em qualquer ação que empreendamos,
mesmo nas mais sagradas[14]. Quando
queremos algo, o que queremos de fato? Motivações egoístas podem me levar a
opções que parecem boas, mas não o são[15].
A fé fundamenta nossa
vida em Deus, tornando-nos livres ao
relativizarmos tudo o que não seja Deus. O contrário é o medo que nos paralisa
em nossas seguranças humanas e impede nos abrirmos à novidade do Espírito. A conversão que deve nos acompanhar ao
longo da vida como atitude básica do
cristão consiste numa prontidão a se autotranscender, seja em seu horizonte de
compreensão, seja em sua motivação para a ação, seja em sua vivência da fé como
resposta no amor a um amor infinito prévio. Esta atitude é imprescindível para
a reforma da Igreja. Vemo-la concretizada na pessoa do Papa Francisco, em sua
liberdade, em sua coragem, em seu ensinamento, em sua destemida atitude
profética. Mas a reforma da Igreja depende também de todos nós que somos a
Igreja!
[1]
PAPA FRANCISCO, Misericordiae Vultus,
Paulinas, S. Paulo, 2015, n.25
[2]
J. M. BERGOGLIO, Il pluralismo teológico, La
Civiltà Cattolica n.3952 (23/02/2015) p. 313-328. Tradução italiana do
artigo: “Sobre pluralismo teológico y eclesiologia latino-americana”, Stromata 40 (1984) p. 321-331.
[3]
J. RATZINGER, Comentário ao texto da Comissão Teológica Internacional, O Pluralismo Teológico, Loyola, S.
Paulo, 2002, p. 45.
[4]
Ibid. p.37-41.
[5] J.
A. KOMONCHACK, Foundations in
Ecclesiology, F. Lawrence (ed.), Boston, 1995.
[6]
M. FRANÇA MIRANDA, A Igreja entre a inculturação e a globalização, em: Id., Igreja e Sociedade, Paulinas, S. Paulo,
2009, p. 9-36.
[7]
B. LONERGAN, The Translation from a Classicist World-View to Historical-Mindedness,
em: Id., A Second Collection, Westminster
Press, Philadelphia, 1975, p. 1-9.
[8]
K. RAHNER, Theologie im Neuen Testament, Schriften
zur Theologie V, Benzinger, Einsiedeln, 1962, p. 33-53; W. PANNENBERG,
Pluralismus als Herausforderung und Chance der Kirche, em: Id., Kirche und Ökumene. Beiträge zur
Systematischen Theologie III, Göttingen, 2000, p. 25s.
[9] Y.
CONGAR, Diálogos de outono, Loyola,
S. Paulo, 1990, p. 70-74.
[10]
B. LONERGAN, Method in Theology, Herder,
New York, 1973, p. 237-244.
[11]
J. RATZINGER, A propos de la situation oecuménique, em: Id., Faire route avec Dieu, Paris, 2003, p.
239.
[12]
Ver NELLO SCAVO, I Nemici du Francesco,
Milano, Piemme, 2015.
[13]
J. RATZINGER, Deus caritas est,
Paulinas, S. Paulo, 2006, n.17.
[14]
Já Santo Inácio de Loyola advertia os jesuítas: “Sejam frequentemente exortados
a procurar em todas as coisas a Deus Nosso Senhor, arrancando se si, quanto
possível, o amor de todas as criaturas para o pôr todo no Criador delas,
amando-O em todas, e amando a todas n’Ele” (Constituições
n. 288).
[15]
P. VALADIER, La part des choses.
Compromis et intransigeance, Lethielleux, Paris, 2010, p. 167-208.
O
ESPÍRITO SANTO E A CONFIGURAÇÃO ECLESIAL
Constatamos hoje certo
descompasso entre a Igreja e a sociedade, também observado em outras
instituições, devido principalmente à imagem que ela deixa transparecer num
mundo em aceleradas mudanças. O objetivo deste capítulo é mostrar como o
Espírito Santo está presente e ativo ao longo da história da Igreja, iluminando
e orientando seus membros a corresponder aos desafios socioculturais de cada
época, ocasionando configurações eclesiais diversas da mesma Igreja de Jesus Cristo. Deste modo nossa perspectiva pneumatológica
se limita principalmente à incidência da ação do Espírito Santo na instituição
eclesial. Do mesmo modo a Igreja será considerada preferentemente tal como
aparece aos olhos de nossos contemporâneos, numa palavra, em sua configuração concreta.
Para iniciar uma breve
explicação sobre o termo “configuração”. Pelo fato de que a Igreja é uma
realidade humano-divina (LG 8) seus elementos essenciais provenientes da
revelação tais como a pessoa de Jesus Cristo, o anuncio da Palavra, sua
acolhida na fé, a celebração da mesma nos sacramentos, especialmente no batismo
e na eucaristia, a comunidade dos fiéis, o ministério ordenado, serão
necessariamente captados, entendidos, vividos, expressados, no interior de cada
contexto sociocultural respectivo, que oferece aos cristãos a linguagem e as
práticas desta sociedade. Por outro lado a história nos ensina que estes
contextos socioculturais se transformam continuamente devido aos desafios
internos e externos (cultura é mais propriamente processo cultural), urgindo
mudanças no modo como os cristãos entendem e vivem sua identidade como membros
da Igreja.
A história da Igreja
nos fornece configurações diversas da mesma Igreja ao longo dos séculos,
ocasionadas pelas transformações da sociedade de então, que significaram sua
sobrevivência, embora nem sempre suas opções sejam vistas teoricamente como
corretas por nós hoje. Enquanto uma realidade histórica e regional cada
configuração é sempre inevitavelmente limitada, pois não consegue expressar a
totalidade da riqueza da comunidade eclesial. Pois devendo ser sinal,
sacramento, expressão do mistério transcendente de Deus vivo na comunidade para
uma determinada época histórica com seus questionamentos próprios, a Igreja
buscará uma configuração que mais possibilite deixar transparecer sua
identidade, acentuando algumas de suas características e deixando outras em
segundo plano.
As configurações históricas
da Igreja não foram determinadas apenas pelos contextos históricos respectivos,
mas também por concepções teológicas que justificavam tais configurações[1]. A
configuração eclesial acrescenta aos modelos de Igreja o importante componente
sociocultural, neles também presente e atuante, porém latente e desconhecido.
Mas não se limita ao mesmo e deste modo se distingue de uma abordagem meramente
sociocultural[2].
É importante também ter presente que as configurações históricas da Igreja não
se restringem a “roupagens” externas de uma sempre mesma realidade, pois tais
configurações contribuem para novas percepções do que seja a Igreja, que,
enquanto mistério, jamais poderá ser definitivamente definida[3]. Quando
certa configuração histórica, adequada a tempos passados, deixa de ser
entendida, acolhida e vivida por outras gerações[4],
então sociedade e Igreja se distanciam, quando não se hostilizam, e estoura também
a crise no interior da própria Igreja, pois seus membros não a reconhecem como
tal e dela se afastam, quando deveriam pelo seu testemunho e pela sua ação
mantê-la em vida e faze-la crescer.
Na lenta elaboração de
uma configuração eclesial o personagem principal é o Espírito Santo. Pois sua ação contínua em vista do Reino de Deus,
não se limita apenas a possibilitar e fomentar a vida cristã dos membros da
Igreja, mas atinge também as condições socioculturais onde vivem estes membros,
a saber, a própria sociedade, e assim também a instituição Igreja enquanto o
espaço onde a fé se torna consciente e a vida cristã se desenrola. Pois em seu
agir salvífico o Espírito Santo não prescinde das mediações humanas, através
das quais, como nos atesta a própria Bíblia, leva adiante o plano salvífico de
Deus. É Ele quem nos sensibiliza para as mudanças que urgem, quem nos alerta para
os desvios sempre possíveis, quem nos leva a conversão e a viver mais
autenticamente a fé, quem indica as reformas estruturais que devolvam à Igreja
sua beleza e sua força atrativa.
1.
A ação do Espírito Santo em vista do Reino de Deus na Escritura
A Escritura nos
apresenta os relatos e as repercussões da ação de Deus na história sem
preocupação de ordena-las e sistematiza-las. A própria busca de uma linha
coerente que unifique e esclareça o rico e diversificado material que ela nos
oferece, já implica uma interpretação ou uma leitura determinada e, portanto,
parcial, aberta a outras que a completem. Observação importante devido à ótica
que adotaremos neste estudo. Buscaremos antes de tudo relacionar a ação do
Espírito Santo com a noção do Reino de Deus. Nosso objetivo, como veremos mais
adiante, é considerar o que resulta de tal enfoque para a realidade
institucional da Igreja.
Já de início devemos
corrigir a expressão “espírito” como se opondo à matéria quando nos referimos
ao Espírito Santo. Pois o termo hebraico é “ruah” que indica, sobretudo, força,
vento impetuoso, poder criador de vida. Daí também significar o sopro de vida
de homens e animais: “Se retiras sua ruah,
morrem e voltam ao pó; se envias a tua ruah,
são recriados e renovas a face da terra” (Sl 104,29s). A própria palavra (dabar) de Deus é palavra criadora (Sl
33,6) e nela está presente a ruah de
Deus. Deste modo a ruah implica uma
presença atuante de Deus, mas também a força que dá vida aos seres viventes
(alento vital). Poderíamos ainda avançar mais afirmando que a força de Deus
conserva todos os seres em sua existência.
A ação de Deus na
história em favor de seu Povo já aparece no livro dos Juízes, que relata como
pessoas concretas são possuídas e dirigidas pelo Espírito de Deus com a
finalidade de orientarem as tribos e salvarem o povo de situações críticas.
Ação transitória em alguns personagens (Otoniel, Gedeão, Sansão) que mais tarde
será mais permanente com o advento da monarquia em Israel. Daí o rei representar
Deus no meio do povo. Os antigos profetas apareciam como possuídos pelo
espírito de Deus que os iluminava sobre a vontade de Deus ou sobre a conduta a
ser seguida. Os profetas mais tardios (Amós, Oseias, Miqueias, Isaías e
Jeremias) anunciam já o dabar de
Deus: “assim fala o Senhor”. Mais tarde o dom do espírito começa ser
ritualizado (Saul) para o rei e nele para todo o povo de Israel. Além disso os
salmos atestam ainda uma experiência pessoal, interior, da ação do espírito (Sl
51,12s). O profeta Ezequiel nos traz a promessa do envio do espírito a todo o
povo: “Porei em vós o meu espírito e farei com que andeis segundo minhas leis e
cuideis de observar os meus preceitos” (Ez 36,27). Aqui aparece a estreita
ligação da ação do espírito coma torá, que expressa o objetivo de Deus para seu
povo constituir uma sociedade fraterna e justa. Embora este espírito provenha
de Deus, fazendo-O presente e atuante na história, ele não se identifica com
Deus.
As experiências de
Israel com Deus apresentam um componente de esperança com relação ao futuro.
Daí a expectativa messiânica cujo personagem está intimamente conectado com o
espírito (Is 11,1-9), o que vale também para o misterioso Servo de Javé (Is
42,1) e para o ungido de Deus: “O espírito do Senhor está sobre mim” (Is 61,1),
onde aparece claramente características de uma nova sociedade, sem aflitos,
pobres, cativos, tristes, preanunciando a criação do novo céu e da nova terra
(Is 65, 17-25). Pois a ação do espírito prometido atinge também a natureza que
participa assim da alegria do povo (Is 44,23; 55,12s). Enquanto a ruah de Deus repousa no próprio povo
eleito, esta força que vem de Deus garante nova vida para este povo (Ez
37,1-28), dotado de uma lei infundida nos corações de todos pelo próprio Deus
(Jr 31,23-34; Jl 3,1). Portanto uma atuação permanente, universal e direta de
Deus, provinda das experiências históricas de Israel em vista de uma sociedade
futura vivendo sob a soberania (Reino) de Deus.
A experiência cristã de
Deus tem início com Jesus de Nazaré, mas esta verdade não foi devidamente
valorizada na tradição cristã. O Espírito Santo enviado por Cristo, ou a
pneumatologia cristológica de Paulo e de João, prevaleceu sobre o Espírito que
atuou em Jesus durante sua existência histórica, a cristologia pneumatológica,
tal como nos mostram os evangelistas sinóticos. Ambas não se sucedem
temporalmente, mas se implicam mutuamente, como veremos.
A experiência que Jesus
faz do Espírito por ocasião de seu batismo (Mc 1,10) dá início à sua vocação
messiânica e à sua missão. Neste Espírito Jesus experimenta uma relação
especial com Deus como seu Pai e neste Espírito o Deus se relaciona com Jesus
como seu Filho. Não é possível falar de Jesus e nem de seu relacionamento com
Deus sem mencionar o Espirito. É este Espírito “sem medida” (Jo 3,34) que Jesus
possui, esta força de Deus que o possibilita expulsar demônios e curar
enfermos, perdoar os pecadores e socorrer os pobres, mas também a percorrer um
caminho difícil, em meio a tentações (Mc 1,12), a incompreensões, a conflitos
até sua paixão e morte de cruz. Cristo “pelo Espírito eterno se ofereceu como
vítima imaculada a Deus (Hb 9,14). É através deste caminho que se delineia sua
missão messiânica na fraqueza e não no poder.
Mas deste caminho
participa igualmente o Espírito que o anima, inspira e fortalece
permanentemente. Portanto este itinerário nos revela também como atua o
Espírito, sua quenose, e portanto sua
identidade. O Espírito se rebaixa, se esvazia, e como tal atua em Jesus
levando-o a sua entrega por nós. (Mt 8,17). Ao se mostrar intimamente unido ao
destino de Jesus, o Espírito de Deus se torna definitivamente o Espírito de
Cristo. A história de Jesus é a história do Espírito de Jesus, sempre presente
ao longo de sua vida, mesmo no Getsêmani e no Gólgota levando-o ao abandono nas
mãos de Deus.
Mas o Espírito de Deus
não apenas conduz Jesus a sua entrega na morte de cruz, mas também é aquele que
o liberta da morte e no qual Jesus se torna uma presença viva no meio da
comunidade cristã. Além da experiência pessoal do Espírito por parte de Jesus e
a experiência do Espírito de Jesus por parte da comunidade. Aí o Espírito
aparece como a força que ressuscita Jesus dos mortos (Rm 1,1-4), que o faz
voltar à vida (1Pd 3,18), do mesmo modo que o profeta Ezequiel o afirmava como
responsável pela nova criação e a vida eterna (Ez 37). Cristo foi ressuscitado
pela ruah de Deus. Este dado da
Escritura proveio das experiências feitas pelos primeiros discípulos com o
Ressuscitado. Daí concluem que Cristo vive no Espírito eterno e que o Espírito
divino atua nele e por ele. Daí a afirmação de Paulo de que Cristo é alguém
“que dá vida” (1Cor 15,45) e o que o Espírito passe a ser o “Espírito de
Cristo” (Rm 8,9; Gl 4,6)), sendo então Cristo o sujeito do Espírito, quem o
envia (Jo 16,7; 20,22).
Nossa fé no Cristo
ressuscitado se dá “no Espírito” e aí concomitantemente é experimentado o
Espírito, sem que o experimentemos diretamente, como não vemos os olhos com que
enxergamos. Observemos ainda que o Espírito é enviado pelo Pai em nome de
Cristo (Jo 14,26; 15,26). O Espírito procede do Pai e é enviado por Jesus que o
pede ao Pai (Jo 14,16). Mas é o Espírito, enquanto força criadora que vence até
a morte, que nos desperta para a esperança da vida eterna em Deus. Pois a
ressurreição de Cristo pelo Espírito é a antecipação e o início da nova criação
de todas as coisas, do Reino de Deus em plenitude, da nova humanidade em Deus.
2.
O Espírito Santo constitui a comunidade eclesial
Não podemos conceber
Igreja sem a ação vitoriosa do Espírito Santo. Pois enquanto “comunidade dos
que creem” aparece a fé como o fundamento da própria instituição eclesial, como
já observou Tomás de Aquino. Entretanto nesta opção do ser humano pela pessoa
de Jesus Cristo está presente o Espírito Santo (1Cor 12,3). Este mesmo Espírito
abre o acesso aos dons de Deus ((1Cor 1,12), habita no cristão (Rm 8,9), faz
dele filho de Deus (Rm 8,14), lhe possibilita invocar a Deus como Pai (Rm 8,15;
Gl 4,6), rezar como se deve (Rm 8,26), bem como sustenta sua esperança da vida
eterna (Rm 8,11).
De fato, o Espírito
constrói a comunidade cristã ao inserir na mesma, através da água do batismo, o
neófito, como tão incisivamente afirma São Paulo: “Pois todos nós fomos
batizados em um só Espírito, para formarmos um só corpo, judeus ou gregos,
escravos ou homens livres, e todos nós bebemos de um único Espírito” (1Cor
12,13). O batismo de água torna visível o dom do Espírito, ambos aparecem
unidos em Paulo no mesmo processo, embora o protagonismo principal do Espírito
não esteja tão presente na consciência de muitos cristãos na celebração deste
sacramento. Somos cristãos pela fé em Jesus Cristo e pelo dom do Espírito. O
Espírito é dado à fé, mas esta é professada no batismo (At 2, 38). Também na
ordenação ministerial a imposição das mãos, que como tal já expressa
comunicação do Espírito, é acompanhada de uma invocação ao Espírito, como era
costume no início do cristianismo (1Tm 4,14; 2Tm 1,6). Igualmente no sacramento
da reconciliação, cujo perdão nos vem do Espírito (Jo 20,22s) pela mediação do
sacerdote conforme o Novo Ritual deste sacramento (n. 19). E todos nós sabemos
da importância da epiclese (invocação
do Espírito) na consagração eucarística.
Mencionemos ainda que também
a Palavra de Deus só é captada e acolhida como tal pela ação prévia do Espírito
Santo, como nos ensina o episódio de Lídia (At 16,14) e a unção do Espírito,
mencionada por João (1Jo 2,20 e 27) e Paulo (2Cor 1,21). Igualmente toda a vida
cristã, liberta da lei, é impulsionada e originada pela ação interior do
Espírito: “Se vivemos pelo Espírito, andemos também sob o impulso do Espírito”
(Gl 5,25). Também é o Espírito que fundamenta a comunhão dos membros da Igreja (2Cor
13,13), já que em todos está presente e ativo. Do mesmo modo a atividade
missionária da Igreja se deve ao Espírito que provoca e fortalece os primeiros cristãos
a proclamarem sua fé (At 2,4; 4,31) e a tomarem decisões em vista do apostolado
(At 11,12; 15,28). A presença atuante do Espírito nos fiéis faz da Igreja o
“templo do Espírito Santo”, como exprime o apóstolo Paulo (1Cor 3,16s; 2Cor
6,16). No Credo que rezamos a Igreja vem depois da profissão de fé no Espírito,
pois sem Ele não existiria. É importante que tomemos consciência desta verdade
em nossos dias: a adesão na fé, a escuta da Palavra de Deus, a oração a Deus, a
recepção dos sacramentos, o tipo de vida próprio dos cristãos, a missão
evangelizadora da Igreja, tudo isto depende da ação do Espírito Santo.
Aqui aparece como a
realidade institucional da Igreja se revela insuficiente para explicar sua ação
salvífica, que só pode provir de Deus. Daí a invocação constante ao Espírito
Santo, a importância da epiclese também
em sua vida e em sua missão. Como já se escreveu: “Sem o Espírito, Deus está
longe, Cristo fica no passado, o Evangelho é letra morta, a Igreja uma simples
organização, a autoridade dominação, a missão mera propaganda, o culto uma
evocação e o agir cristão uma moral de escravos”[5].
Mas o Espírito Santo
não limita sua ação aos corações dos fiéis, já que atinge também a configuração
institucional da Igreja. Pois enquanto é derramado sobre todo o Povo de Deus
conforme a promessa (Jl 3,1-5; At 2,17-21), todos recebem o seu carisma próprio
(1Cor 7,7), ocasionando assim uma diversidade plural de carismas no interior da
comunidade: “Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. Há diversidade
de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. Há diversas atividades, mas é o mesmo
Deus que realiza tudo em todos. A cada um é dada a manifestação do Espírito em
vista do bem de todos” (1Cor 12,4-7). Os carismas não são necessariamente dons
extraordinários, mas também graças que na sua simplicidade e discrição
contribuem para a edificação da comunidade.
Não podemos distinguir
em Paulo ministérios “carismáticos” e “não-carismáticos”, pois também os
ministérios “funcionais” são considerados por ele como carismáticos. Todos os
membros da comunidade recebem seu carisma do Espírito que livremente os
concede, mas que também ordena e regula a coexistência de todos eles, sobretudo
através do carisma da caridade. Embora esta atuação do Espírito já resulte numa
certa “ordem” ou “estrutura” na comunidade, não podemos afirmar que a mesma
constitua uma determinada forma institucional em seu interior, seja de cunho
monárquico, oligárquico ou democrático, pois tal ideia não condiz com a
doutrina paulina dos carismas. De fato, a ação do Espírito orienta a edificação
da comunidade para uma forma que seja mais conveniente para a participação e
comunhão de todos os seus membros, bem como para a irradiação da Boa Nova aos
de fora da comunidade. Pois já encontramos no Novo Testamento formas
diferenciadas de comunidade, de vida fraterna e de estruturas eclesiais, seja
devido aos diferentes contextos socioculturais, seja devido às mudanças no
desenrolar do tempo, como nos mostram a organização eclesial que emerge das
Cartas Pastorais, dos Atos dos Apóstolos e das Cartas Paulinas. Assim nas
Cartas Pastorais o Espírito é concedido pela imposição das mãos em vista do
ministério de direção da comunidade (1Tm 4,14; 2Tm 1,6).
3.
O Espírito Santo e o Reino de Deus
A importância do
Espírito Santo para a fé cristã só pode ser devidamente entendida na medida em
que a ação do Espírito na criação é vista em sua correlação com a ação do
Espírito na recriação escatológica. Aquele que insuflou vida é o mesmo que
vivificará os que morrem em Cristo. A força do Deus (ruah) que ressuscitou Cristo é garantia de vida plena para seus
seguidores (Rm 8,11). Mas a ação do Espírito Santo não se limita apenas à
criação e à ressurreição da carne, já que inspira e fortalece as ações humanas
que denotam originalidade e criatividade, como a inspiração profética, as obras
artísticas, a produção poética, a ousadia dos heróis, no carisma dos
governantes. Sempre se trata de conferir mais vida a todos. É exatamente o Espírito
que nos criou para a vida aquele que nos faz almejar a vida eterna, já que esta
vida na condição carnal é devolvida a Deus quando morremos (Ecl 12,7), pois não
nos foi dada em plenitude (Gn 6,3).
A existência humana é
toda ela voltada para a vida plena em Deus, da qual a ressurreição de Jesus
constitui uma antecipação e uma garantia. A influência da gnose deturpou esta
visão. Como expressa um teólogo: “O futuro de Deus foi sendo substituído pela
eternidade de Deus, o Reino vindouro pelo céu, o Espírito como ‘fonte de vida”
pelo espírito que liberta a alma do corpo, a ressurreição da carne pela
imortalidade da alma, a transformação deste mundo pelo anseio por um outro
mundo”[6]. Pelo
contrário, é o Espírito que nos anima a lutar pela vida, a diminuir tudo o que
significa diminuição da vida, a promovermos uma sociedade que possibilite vida
para todos, a considerarmos efêmeras as manifestações de morte, porque somos
animados pelo Espírito que nos faz esperar pela vida plena em Deus.
A ação do Espírito em
nós nos faz crer no Deus da vida, no Deus que quer a felicidade plena do ser
humano e que nos estimula a colaborarmos com seu projeto do Reino, a finalidade
última de toda a criação. Cada vez que concretizamos na história os valores do
Reino, estamos, fortalecidos pelo Espírito de vida, fazendo acontecer o Reino
de Deus, embora de modo frágil, ameaçado e limitado, próprio da condição
humana. Podemos mesmo entender toda a história do Povo de Deus como o lento
processo de formação de uma sociedade que manifestasse na imperfeição da
história a comunidade futura do Reino de Deus, na qual o amor e a justiça
fossem uma realidade plena[7].
Aqui está o sentido
último da Igreja: toda ela está voltada para a realização do Reino de Deus na
história. Pois tendo tido seu início em Pentecostes, este evento significa a
plenitude da ação do Espírito na criação, pois os apóstolos testemunham a
vivificação de Cristo, penhor da ressurreição dos demais seres humanos, pela
mesma força de Deus. E os que se unem a eles constituem a nova comunidade
cristã, animada pelo mesmo Espírito que animou Jesus, o Espírito de Cristo,
procurando já tornar realidade na história os valores do Reino de Deus futuro e
assinalando já a comunidade humana vivendo o amor e a justiça, seja pela vida
de seus membros, seja por suas celebrações como na eucaristia[8]. A
Igreja não é o Reino de Deus. Sua missão é assinalá-lo para toda a humanidade
como seu destino final. Pois ela sabe que esta realidade escatológica de todo o
universo e de toda a história é obra de Deus. Como comunidade viva de todos os
filhos de Deus ela inclui em sua compreensão a ressurreição de Cristo e também
a nossa ressurreição, ambas resultantes da ação da força de Deus, do Espírito
Santo.
4.
O Espírito Santo plasma a Igreja institucional ao longo da história
Urge corrigir uma
lacuna do passado que reconhecia a ação do Espírito Santo no cristão, mas não a
via tão claramente na Igreja[9].
Para Paulo e João o Espírito é sempre concedido à Igreja (Jo 14,16; Rm 5,5;
1Cor 12, 4-11). Não haveria Igreja sem o acolhimento do querigma salvífico
possibilitado pelo Espírito Santo (1Cor 12,3). Em todas as ações salvíficas da
Igreja pelo anuncio da Palavra ou pelas celebrações sacramentais está presente
o Espírito Santo. Daí a conclusão Y. Congar de que todas as ações salvíficas da
Igreja são epicléticas sem mais[10].
Consequentemente podemos afirmar que a Igreja não foi fundada somente na
origem, Deus a constrói ativamente sem cessar. Esta é uma ideia expressa em
1Cor 12[11]. O
Espírito é o sujeito transcendente da tradição viva e garantia de sua
fidelidade (2Tm 1,14), podendo ser considerado princípio constituinte da Igreja[12].
A Bíblia nos ensina que
a ação do Espírito se faz sempre através de uma mediação humana, como vimos anteriormente.
Mas não através de um ser humano abstrato, e sim de alguém vivendo num contexto
histórico bem determinado. É ele quem vai captar, expressar e transformar em
ação o impulso do Espírito. Esta afirmação vale também para a ação do Espírito
na constituição da comunidade eclesial, cujos carismas em sua diversidade tanto
levam a uma compreensão do que seja a própria comunidade, quanto já delineiam
as funções e as estruturas da mesma. Como a revelação só chega a sua plenitude
quando recebida na fé, assim também a ação do Espírito Santo[13]. Deste
modo a comunidade cristã se constitui e se autocompreende com as representações
mentais, as estruturas de pensamento, as categorias sociais, presentes e
atuantes em seu respectivo contexto sociocultural. Desconhecer esta realidade
pode significar absolutizar o relativo, eternizar o histórico, fixar o
provisório, impedir novas configurações eclesiais. Portanto a comunidade dos
fiéis naturalmente expressa e transmite sua fé através de expressões
doutrinais, de ritos e práticas, de organizações sociais, de funções e papeis,
de estruturas, que respondam, de um lado, à ação do Espírito e, de outro, à
linguagem e organização social disponível e adequada ao contexto histórico onde
se situa. A Igreja só pode realizar sua missão em prol do Reino de Deus
mediante uma linguagem que seja performativa, mediante ações que sejam significativas,
mediante opções que respondam aos desafios existenciais e sociais de uma
geração.
Assim como pela
encarnação do Verbo de Deus só chegamos ao Cristo da fé por meio do Jesus da
história com todos os condicionamentos de espaço e tempo, cultura e sociedade
(1Jo 1,1-3), assim também a Igreja, enquanto realidade humano-divina, só existe
encarnada e inserida numa realidade histórica. Ainda mais. Enquanto realidade
histórica está ela sempre sujeita às transformações da própria história. Embora
deva sua existência à iniciativa de Deus que a determina em seus constitutivos
institucionais, enquanto realidade histórica necessariamente devem tais determinações
estar configuradas para cada contexto
histórico respectivo. E como tais contextos se sucedem ao longo da história,
não nos admira que também a Igreja experimente transformações de cunho
linguístico e institucional, de cunho pastoral e vivencial, como nos confirma a
própria história da mesma.
Este ponto deve ser
enfatizado. A Igreja só é realmente Igreja para seus contemporâneos à medida
que deixa transparecer o que ela é
para esta sociedade. Ela tem essencialmente uma dimensão “icônica”, pois deve
remeter à realidade da comunhão de todos no mesmo Espírito (2Cor 13,13)[14].
Com outras palavras, a sociedade deve poder captar e entender sua verdade
teológica, desde que manifestada em sua realidade institucional e em sua vida
comunitária. Caso contrário ela deixa de ser sinal, aparece deformada aos olhos
da sociedade, perde credibilidade e força de irradiação[15].
Observemos que sempre
um discernimento se faz necessário para comprovar a autenticidade das
transformações, pois nem tudo na cultura e na sociedade onde se encontra a
Igreja corresponde à mensagem evangélica e deve ser simplesmente assumido. Sem
mencionar que a história nos demonstra que determinadas mentalidades e
estruturas presentes na Igreja resultaram da vaidade e do desejo de poder. Daqui
podemos ainda entender que muitas resistências a mudanças urgentes na Igreja se
originem não só de representações e hábitos mais tradicionais, mas também do
egoísmo, da vaidade e da vontade de poder.
5.
A configuração eclesial no Concílio Vaticano II
João XXIII considerou o
Concílio como um novo Pentecostes[16].
Esta afirmação pressupõe a ação do Espírito Santo na instituição eclesial a
cujo serviço ela deve estar. De fato, “o organismo social da Igreja serve ao
Espírito de Cristo que o vivifica para o aumento do corpo (cf. Ef 4,16)” (LG
8). A assistência contínua nos fiéis (LG 4) leva ao progresso da própria
Tradição (DV 8) e à abertura de novos caminhos para abordar o mundo de nosso
tempo (PO 22). Assim se, de um lado, o Espírito Santo guarda indefectivelmente
a forma de governo instituída por Cristo na sua Igreja” (LG 27), de outro, Ele
a rejuvenesce e a renova perpetuamente (LG 4).
A Igreja da cristandade
do passado, gestada ao longo dos séculos, se caracterizava por diversos
elementos que lhe conferiam uma configuração própria[17].
Sem dúvida uma Igreja fortemente hierarquizada, legalista, triunfalista,
separada do mundo (profano), uma Igreja unida ao Estado (poder), piramidal, uniformizadora,
cujos membros constituíam uma massa passiva[18].
Era uma Igreja que, embora tenha em sua história fatos memoráveis e figuras
exemplares, se encontrava separada da sociedade e muito voltada para si.
A preocupação de João
XXIII era de fazer a Igreja repensar sua identidade diante do mundo, abrindo
diálogo com todos, ouvindo-os e realizando uma autêntica atualização (aggiornamento) em sua configuração
histórica. O próprio estilo de seus documentos, sem anátemas e condenações,
indica já a finalidade pastoral deste
Concílio[19],
que quis levar a sério o contexto histórico e cultural de então, para que
pudesse ser entendido e acolhido pela sociedade. Portanto, pastoral aqui não se
opõe a dogmático, mas afirma a sempre nova atualidade da verdade do dogma e a
apresenta viva para uma geração[20].
Deste modo, sem estar ausente nos Concílios anteriores, mais voltados para a
ortodoxia doutrinal e a ordem institucional, fica patente a preocupação dos
padres conciliares com a finalidade salvífica da Igreja. Daí a necessidade do
diálogo e da atualização. Mesmo sem entrar na temática do “conflito das
interpretações” deste Concílio, aparece claramente que dele brotou uma
configuração eclesial, a qual não pode ser caracterizada simplesmente como nova, pois consistiu na recuperação do
que havia de melhor na tradição do primeiro milênio.
Assim podemos citar
algumas características da Igreja presentes nos textos conciliares, mesmo
reconhecendo que não somos completos. A Igreja se concebe como mistério, como
Povo de Deus no qual a igual dignidade de todos é ressaltada, a centralização
do governo cede à colegialidade, o laicato emerge como sujeito eclesial e
responsável pela missão, a Igreja Local desponta tendo suas características
culturais respeitadas. Assim nesta configuração a Igreja se volta para fora de
si, para o mundo, participando de suas dores e alegrias e dele aprendendo para
melhor realizar sua missão. Igualmente ela se abre ao diálogo com a cultura
moderna, com as outras Igrejas cristãs, com as demais religiões. Deixa de ser
uma Igreja autocentrada para ser uma Igreja a serviço da sociedade[21].
Importante aqui é a
consciência da historicidade da Igreja, cuja tradição se vê enriquecida pela
ação do Espírito Santo tendendo continuamente para a plenitude da verdade
divina (DV 8). Este enriquecimento acontece pelas diversas perspectivas de
leitura da própria tradição, as quais se sucedem com os anos e com as diversidades
culturais. Acontece até mesmo nas diversas, embora complementares,
interpretações do próprio Concílio[22]. Esta
conclusão é confirmada pela própria história da Igreja, sempre a mesma e sempre
adquirindo novas configurações para manter sua identidade de instituição salvífica
para o mundo.
6.
A configuração eclesial na América Latina
A recepção do Concílio
Vaticano II na América Latina se concretizou fundamentalmente e de modo
original na Assembleia Episcopal do CELAM em Medellín (1968). Contribuiu para
este fato a responsabilidade da Igreja pela sociedade, assumida na Gaudium et Spes, a escandalosa realidade
dos pobres neste subcontinente e, certamente, a ação do Espírito Santo mediante
os bispos e os teólogos desta época. Como em toda recepção há uma releitura do
que é recebido devido ao novo contexto e, em alguns casos, devido ao próprio
distanciar no tempo. Na Mensagem aos
Povos da América Latina aparece já claramente que os bispos assumem a
realidade latino-americana, querem promover uma sociedade mais justa e fomentar
uma evangelização integral e mesmo renovar as estruturas eclesiais. Além disso
valorizam a religiosidade popular e insistem numa Igreja mais pobre. Medellín
prossegue na linha “pastoral” do Concílio e tem uma importância decisiva para
os anos posteriores[23].
Entender e viver a fé cristã na perspectiva dos pobres fará surgir para esta
região uma reflexão teológica libertadora, embora diversificada.
Sem dúvida estamos às
voltas com uma nova configuração eclesial: uma Igreja pobre, livre de
compromissos temporais, de títulos honoríficos anacrônicos, de conivência com
os poderosos, comprometida com o desenvolvimento integral da pessoa, solidária
com os que sofrem, inserida em meios populares, enfim mais fiel ao Evangelho[24]. A
Assembleia Geral de Puebla (1979) retoma a orientação básica de Medellín,
aperfeiçoando-a com uma maior atenção ao fator cultural latino-americano. Em
Aparecida (2007) se insiste fortemente na finalidade missionária da Igreja, no
papel que nela tem o laicato, na necessidade de uma séria conversão pastoral
que possibilite uma nova mentalidade e novas estruturas eclesiais. Só assim a
experiência da vida de fé e a vivência comunitária poderão se tornar realidade[25].
Um olhar retroativo para
a lenta, mas firme, caminhada da Igreja da América Latina, apesar das
incompreensões e das dificuldades surgidas, deixa aflorar já uma configuração
específica, sobretudo quando confrontada com a Igreja da cristandade. Uma
primeira característica diz respeito à fé
vivida como experiência salvífica. De fato. O acolhimento da iniciativa
salvífica de Deus em Jesus Cristo e possibilitada pelo Espírito Santo constitui
um evento que atinge a pessoa em sua existência concreta. Assim a fé não é
tanto uma aceitação formal e descompromissada da doutrina cristã, forte
preocupação da Igreja no passado, juntamente com as normas morais e o
enquadramento jurídico. Daqui se compreende a insistência do texto de Aparecida
por um encontro pessoal com Jesus Cristo e por um catecumenato mistagógico[26].
Também a noção de
Igreja como comunhão e a consciência de ser toda ela voltada para a missão, tal
como afirmou o Vaticano II, repercutiu em Aparecida que vê no empenho missionário uma característica
do cristão, tanto com relação à sociedade como no interior da Igreja, com
participação ativa na pastoral. Naturalmente “discípulos missionários” só
teremos se houver uma mudança de mentalidade do clero e estruturas condizentes
com uma maior participação do laicato. A opção
pelos pobres é novamente retomada pelos bispos em Aparecida ao insistir no
exemplo de Jesus Cristo que teve nos pobres seus destinatários privilegiados.
Daí decorre um estilo de vida mais sóbrio, uma revisão das estruturas e
prioridades pastorais para que a Igreja possa ser realmente “a casa dos pobres
de Deus”.
Em todas as Assembleias
os bispos estavam bem conscientes da ação do Espírito Santo nas transformações
da história (Medellín, Introdução às Conclusões n. 4), responsável pela
renovação das leis e das estruturas (Puebla n. 199) e atuante no discernimento
dos sinais dos tempos para descobrir o plano de Deus na construção da sociedade
(Puebla n. 1128; Aparecida n. 33) em vista de impulsionar a transformação da
história (Aparecida n. 151). Como atesta claramente o texto de Aparecida: “A
pastoral da Igreja não pode prescindir do contexto histórico onde vivem seus
membros. Daí nasce, na fidelidade ao Espírito Santo que a conduz, a necessidade
de uma renovação eclesial que implica reformas espirituais, pastorais e também
institucionais” (n. 367).
Sintetizando os
resultados das Assembleias Gerais do CELAM podemos afirmar brevemente que a Igreja da América Latina e do Caribe
almeja uma configuração determinada: Igreja dos pobres, simples e inculturada,
com um laicato ativo, animado por uma experiência pessoal com Jesus Cristo no
interior de uma comunidade de fé, Igreja que valoriza a piedade popular, sem
descuidar uma evangelização integral que integra a dimensão sociocultural e
econômica do ser humano. Sem dúvida uma Igreja despojada de poder, de prestígio
e de recursos, sem sonhos de conquista e com desejos de servir.
7.
A configuração eclesial do papa Francisco
A importância desta
Exortação Apostólica A Alegria do
Evangelho é que ela extrapola seu gênero literário e se apresenta como seu
programa de pontificado (EG 24) para
os próximos anos (EG 1). De modo
muito breve e sintético, podemos caracterizar a configuração subjacente a este
documento em três partes. A primeira enfatiza especialmente a finalidade da
própria instituição eclesial; a segunda atende mais a sua estrutura interna; a
terceira atende sobretudo à qualidade evangélica de seus membros.
Primeiramente, o papa
Francisco na linha do Vaticano II, da Evangelii
Nuntiandi e das Assembleias de Medellín, Puebla e Aparecida, insiste que “a
ação missionária é o paradigma de toda a
obra da Igreja” (EG 15). Esta não
pode estar continuamente voltada para si própria, autorreferenciada, preocupada
com sua autopreservação (EG 27), mas deve
assumir uma pastoral para fora, missionária e não de manutenção como já
indicava o Documento de Aparecida (370). Esta opção faz com que todos na Igreja
sejam de fato missionários, sujeitos ativos pelo fato de serem batizados (EG 120).
Em seguida, o papa
Francisco retoma as conquistas conciliares sobre a colegialidade e as Igrejas
Locais, censura uma centralização excessiva (EG 32), incentiva as Conferências Episcopais que deveriam mesmo ter
certa autoridade doutrinal (EG 32).
Esta participação ativa de todos na Igreja aparece claramente do texto de
Aparecida (371), do qual o então Cardeal Bergoglio foi o presidente da comissão
de redação. A valorização das Igrejas Locais significa também uma aprovação da
inculturação da fé nas mesmas, já que a fé se encarna na
cultura que a recebe (EG 115). Deste
modo valoriza a contribuição das culturas para a própria fé (EG 116) e dá especial atenção à cultura
popular evangelizada que “contém valores de fé e de solidariedade que podem
provocar o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e crente” (EG 68).
Enfim,
a Exortação Apostólica dá grande importância à real vivência da fé, insistindo
na conversão na linha de Aparecida (EG 25),
na saída de si (EG 39), na fidelidade à ação do Espírito Santo (EG 37), numa fé alimentada por um contato
pessoal e frequente com Jesus Cristo, que o experimenta vivo (EG 266), nos confere o olhar de Jesus e
nos faz estar próximos das pessoas (EG 268),
tocando suas misérias e sofrimentos (EG 270).
Realmente a fé cristã só demonstra sua autenticidade na medida em que assume a
opção de Deus revelada em Jesus Cristo, a opção pelos pobres, que implica não
só voltar-se para eles, mas deixar-se por eles evangelizar, saber escutá-los e
compreende-los (EG 198). A Igreja só
terá credibilidade em seu anuncio do Evangelho (EG 199) se nela os pobres se sintam em casa. E o papa conclui: “por
isso, desejo uma Igreja pobre para os pobres” (EG 198).
Aqui
surge uma questão. Se formos comparar, em suas características mais
fundamentais, a configuração eclesial delineada no Vaticano II, no texto da Evangelii Nuntiandi, em Medellín,
Puebla, e Aparecida, com a programática Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, constataríamos sem
dúvida uma mesma linha de fundo, um mesmo objetivo, que inevitavelmente
reincide numa determinada configuração eclesial bem diferente daquela da
cristandade. Porém, mesmo sem desconhecer a influência da Igreja
latino-americana na Igreja Universal, estamos hoje diante de um novo desafio.
Pode uma configuração eclesial, plasmada numa região, ser assumida por outras
Igrejas fora desta região? A pergunta se justifica desde que um papa,
autoridade máxima da Igreja Universal, assume como programa de seu pontificado
esta configuração de raízes latino-americanas. Poderíamos fugir da questão ao
nos voltarmos para a história da Igreja e constatarmos que a Igreja europeia foi,
de fato, exportada para os demais continentes do planeta. Mas hoje a
consciência de fé da Igreja, seja em seu magistério, seja em seus fiéis não
mais aceita a plantação de Igrejas europeias em outros contextos
socioculturais. Portanto, volta a questão: o que é universalizável numa
configuração eclesial que sempre será contextualizada, porque necessariamente
encarnada e inculturada? E como podemos demonstrar ser o próprio Espírito Santo
quem move a Igreja para tal configuração?
8. Uma configuração eclesial
provinda do Espírito Santo a partir da periferia?
Para
respondermos a esta questão devemos primeiramente considerar que toda ação do
Espírito Santo na história, sempre em vista do Reino de Deus, se realiza
através de uma mediação humana. Como não existe ser humano em geral, esta ação
não acontece num vazio antropológico, mas sempre num ser humano concreto,
histórico, situado no interior de uma cultura e de uma sociedade. Este é apena
um exemplo concreto de uma verdade mais ampla: toda ação salvífica de Deus deve
ser captada como tal pelo ser humano para poder ser acolhida na fé. Portanto
acolhida no interior das coordenadas culturais e linguísticas desta pessoa e,
portanto, consequentemente será sempre uma fé inculturada. No nosso caso esta
ação vinda de Deus tem como finalidade não só a pessoa individual, mas a mesma
enquanto membro da comunidade eclesial em vista de uma configuração eclesial
para um determinado momento histórico da Igreja.
O
contexto sociocultural entra também em questão pois a realidade chamada Igreja
só existe para levar à sociedade a mensagem salvífica de Jesus Cristo, para
promover já na história o advento do Reino que terá na vida eterna a sua
plenitude. Daí a pergunta: como deve se configurar a Igreja para melhor desempenhar
sua tarefa nesta atual sociedade, com suas luzes e suas sombras, com seus
desafios e chances para torna-la mais humana e cristã? Mesmo que esta pergunta
não tenha sido posta com esta evidencia não podemos negar que o Espírito Santo
atuou desde o início da Igreja em homens e mulheres, social e historicamente
situados, em vista da criação de estruturas, ministérios, opções teológicas,
que respondiam às exigências daquele tempo para a Igreja levar a cabo sua
missão. Naturalmente não podemos deixar de reconhecer que uma leitura meramente
histórica ou sociológica também explica muito da configuração eclesial
alcançada numa determinada época. Mas a atuação do Espírito se situa num outro
nível ao iluminar e mover os membros da Igreja a tomarem consciência do que
deve ser feito e leva-los à ação. Lembremos ainda que a comunidade eclesial é
uma comunidade humana que extrai da realidade sociocultural o material para
refletir a fé, estruturar-se como comunidade, enfatizar oportunamente certas
características da mensagem evangélica para aquele momento histórico. Nada
disso se opõe à afirmação da ação do Espírito Santo, já que é por Ele
pressuposta e instrumentalizada. Como consequência do que vimos até aqui
aparece a configuração eclesial, enquanto configuração, sempre histórica e sujeita
a mudança sempre que as transformações socioculturais exijam para que a Igreja
possa ser entendida, ouvida e seguida pela sociedade. A Igreja então muda para
poder continuar sendo Igreja: sinal e sacramento da salvação de Jesus Cristo,
não só como verdade teológica, mas como realidade visível que assinala
realmente o que é.
Outro
ponto a ser considerado diz respeito aos componentes de uma determinada
configuração histórica, já que alguns deles permaneceram e não mais podem ser
eliminados, enquanto outros aparecem hoje como transitórios, já que os desafios
do contexto histórico do passado que justificavam sua existência simplesmente já
desapareceram. E há ainda um outro componente que deve ser mencionado. As
configurações passadas não apenas refletem o que provem do Espírito Santo, mas
também são resultantes da ambição, da vaidade, da vontade de poder, ou mesmo da
ignorância humana.
Vejamos
por partes. Certas características institucionais na Igreja, consideradas
permanentes e portanto essenciais, têm sua origem no Jesus histórico ou no
Senhor ressuscitado através de seu Espírito. Outras aparecem no Novo
Testamento, mas acabaram desaparecendo. Também na história da Igreja este
fenômeno persistiu como no caso dos sete sacramentos e no caso oposto das “ordens
menores”. Importante é notar que as características que persistem, embora
nascidas no curso da história, devem já se encontrar no patrimônio revelado,
ainda que implicitamente ou em germe[27].
É o que afirma a Constituição Dogmática Dei
Verbum do Vaticano II: a Sagrada Tradição, “oriunda dos Apóstolos, progride
na Igreja sob a assistência do Espírito Santo: cresce, com efeito, a
compreensão tanto das coisas como das palavras transmitidas” (DV 8). Embora este texto não diga
respeito diretamente ao aspecto
institucional da Igreja, serve entretanto também de fundamento para o mesmo. Conforme
dissemos no início, ao definir o que entendemos por “configuração eclesial”,
esta não concerne diretamente a verdade revelada, mas a forma como se apresenta a Igreja, embora por detrás de certas
configurações esteja uma determinada compreensão da verdade revelada, como nos demonstra
Avery Dulles[28],
embora não possamos afirmar o mesmo de todas elas, devido às causas ambíguas de
algumas, ou às pressões vindas de fora de outras determinadas configurações.
Instância
de discernimento neste caso é a própria Escritura, critério fundamental para
uma reforma eclesial que buscará se desfazer de estruturas arcaicas ou não
condizentes com o Evangelho, que significam mais obstáculos do que instrumentos
para a missão da Igreja. Observação óbvia, mas de enorme significado em nossos
dias.
Importante
também é notar, como o faz J. Ratzinger[29],
que a transmissão da fé se dá não só pela doutrina e pelo culto, mas também
pela vida. E na vivência concreta dos fiéis encontram-se também componentes da
mesma não ainda verbalizados (não ditos), que poderão ser percebidos e aflorar
à consciência da Igreja no curso da história devido à apropriação progressiva
da verdade revelada (historicidade do conhecimento) devido à ótica de leitura
respectiva iluminada pela ação do Espirito Santo. Observação importante também
para uma possível nova configuração
eclesial resultante da fé vivida em regiões periféricas, como veremos a seguir.
Podemos
afirmar com Walter Kasper que “o vento sopra do Sul na Igreja”?[30]
Se no passado houve, de fato, uma implantação de uma Igreja de cunho europeu
nos demais continentes, ignorando as culturas locais, entretanto a atual
consciência de fé da Igreja, magistério e fiéis, não mais aceita que algo
semelhante se repita. Portanto, volta a questão: pode uma configuração eclesial
particular ser assumida por outras Igrejas mesmo respeitando suas
características próprias?
Já
vimos que a configuração latino-americana resultou da ação do Espírito Santo,
mesmo com as limitações de cunho cognitivo e moral. Pode ela ser acolhida pelas
Igrejas de outras regiões? Aqui entra o segundo fator da configuração, a saber,
os desafios socioculturais impostos à Igreja. Na medida em que tais desafios
atingem também outras regiões do
planeta, certamente a configuração local da América Latina ganha uma valoração
que ultrapassa suas fronteiras. Podemos afirmar isto? Uma primeira resposta
positiva se fundamenta na repercussão que experimentaram as Assembleias
Episcopais do CELAM e as teologias da libertação em outros continentes e até
mesmo no magistério eclesiástico (Encíclica Solicitudo
Rei Socialis). Este fato indica desafios comuns, salvaguardando
naturalmente as características locais. Sem dúvida o atual fenômeno da globalização,
cultural e econômica, nos facilita entender esta situação.
Mas
este fato indica também que a ação do Espírito Santo, embora aconteça sempre
num contexto particular, pode estar destinada a toda a Igreja. Pois os desafios atuais atingem todo o planeta.
Portanto, o Espírito Santo ao enfatizar numa Igreja Local certas verdades da
fé, inspirar ações correspondentes, gerar uma nova consciência eclesial, uma
nova pastoral, uma nova estrutura institucional, enfim, uma nova configuração,
pode destinar sua ação salvífica também para as demais Igrejas. Já Y. Congar
reconhecia que a iniciativa de renovação eclesial vem não do centro, mas da
periferia, não do alto, mas de baixo[31].
[1]
Como aparece em A. DULLES, A Igreja e
seus modelos, S.Paulo, Paulinas, 1978.
[2]
Ver FRANZ-XAVIER KAUFMANN, Kirchenkrise. Wie
überlebt das Christentum?, Freiburg, Herder, 2011.
[3]
S. DIANICH/S. NOCETI, Tratado sobre a Igreja,
Aparecida, Ed. Santuário, p. 85: “O devenir das configurações históricas,
segundo as quais a Igreja se desenvolveu, e a correlata mutação das formas de
autodefinição com as quais se expressa, não aparecem assim como elementos
acidentais ou acessórios, mas indicativos de uma identidade que nunca poderá
ser definida de maneira estática”.
[4]
Como bem observa Y. CONGAR a respeito da cristandade em seu livro Je crois en l’Esprit Saint II, Paris,
Cerf, 1980, p. 173.
[5]
Ignace Hazim, citado por Y. Congar, Je
crois en l’Esprit Saint II, p. 52.
[6] J.
MOLTMANN, O Espírito da vida. Uma
pneumatologia integral, Petrópolis, Vozes, 2010, p.93.
[7]
G. LOHFINK, Deus precisa da Igreja?
Teologia do Povo de Deus, S. Paulo, Loyola, 2008. É o sentido último da
Torá, da observância do sábado e dos jubileus em Israel.
[8] W.
PANNENBERG, Teologia Sistemática III,
S. Paulo, Paulus/Academia Cristã, 2009, p. 63.
[9] E. T. GROPPE, “The
Contribution of Yves Congar’s Theology of the Holy Spirit”, Theological Studies 62 (2001) p.
452-456.
[10] Y. CONGAR, Je crois en l’Esprit Saint III, Paris, Cerf,
1980, p. 343-351.
[11]
Y. CONGAR, A Palavra e o Espírito, S.
Paulo, Loyola, 1989, p. 94.
[12] J. D. ZIZIOULAS, Being as Communion, London, Darton/Longman/Todd,
1985, p. 140.
[13] J. A. KOMONCHACK, Foundations in Ecclesiology, Boston,
1995, p. 151: “Against the holier abstractions
it is necessary to insist that the Church is not the divine
initiative itself, but the human social
response to God’s grace and word”.
[14] J. D. ZIZIOULAS, “Die
pneumatologische Dimension der Kirche”, Internationale
katholische Zeitschrift Communio (1973) p. 142-144.
[15]
Ch. DUQUOC, “Je crois en L’Église”.
Precarité institutionelle et Règne de Dieu, Paris, Cerf, 1999, p. 271s.
[16]
Ver Y. CONGAR, Je crois en l'Esprit Saint I, Paris, Cerf, 1981, p. 234, nota
16.
[17]
Para uma exposição mais completa, ver G. LAFONT, L’Église en travail de reforme, Paris, Cerf, 2011, p. 204-217.
[18]
V. CODINA, “Nova configuração da Igreja”, em A. BRIGHENTI/F. MERLOS (orgs.), O Concílio Vaticano II. Batalha perdida ou
esperança renovada?, S. Paulo, Paulinas, 2015, p. 108-111.
[19]
J. W. O’MALLEY, What happened at Vatican
II, Cambridge, The Belknap Press, 2010, p. 305.
[20]
K. LEHMANN, “Hermeneutik für einen künftigen Umgang mit dem Konzil”, em: G.
WASSILOWSKY (Hg.), Zweites Vatikanum
vergessene Anstösse, gegenwärtige Fortschreibungen, Freiburg, Herder, p.
79.
[21] Ver J. W. O’MALLEY, Vatican II: Did Anything Happen? na obra coletiva de D. G. SCHULTENOVER (ed.), Vatican II: Did Anything Happen?, New
York, Bloomsbury, 2007, p. 81: “I will summarize in a simple litany some of the
elements in the change in style of the Church indicated by the council’s vocabulary:
from commands to invitations, from laws to ideals, from threats to persuasion,
from coercion to conscience, from monologue to conversation, from ruling to
serving, from withdrawn to integrated, from vertical and top-down to
horizontal, from exclusion to inclusion, from hostility to friendship, from
static to changing, from passive acceptance to active engagement, from prescriptive
to principled, from defined to open-ended, from behavior-modification to
conversion of heart, from the dictates of law to the dictates of conscience,
from external conformity to the joyful pursuit of holiness”.
[22] J. A. KOMONCHAK, “Vatican II as an
Event, em D.G. SCHULTENOVER, ob. cit. p. 40s.
[23] C. Schickendantz, Zeichen der Zeit
heute aus lateinamerikanischer Perspektive, em: P. Hünermann (Hg.), Das Zweite Vatikanische Konzil und die
Zeichen der Zeit heute, Freiburg, Herder, 2006, p. 179.
[24]
J. de J. LEGORRETA, A reforma da Igreja nos documentos das Assembleias Gerais
do Episcopado Latino-americano, Revista
Eclesiástica Brasileira 74 (2014) p. 657.
[25]
M. FRANÇA MIRANDA, Igreja e sociedade,
S. Paulo, Paulinas, 2009, p. 87-91.
[26]
J. F. REINERT, Paróquia e iniciação cristã catecumenal: uma relação urgente, Revista Eclesiástica Brasileira 74
(2014) p. 792-825.
[27] Ver K. RAHNER, Über den Begriff des
“Jus divinum” im katholischen Verständnis, Schriften
zur Theologie V, Einsiedeln, Benzinger Verlag, 1962.
[28]
A. DULLES, A Igreja e seus modelos,
S. Paulo, Paulinas, 1978.
[29] J. RATZINGER, Kommentar zum
II. Kapitel der Dogmatischen Konstitution über die göttliche Offenbarung, em: Das Zweite Vatikanische Konzil. Kommentare,
Freibur, Herder, 1967, p. 518-521.
[30]
W. KASPER, A Igreja Católica, São
Leopoldo, Ed. Unisinos, 2012, p. 52. Ver ainda C. GALLI, “En la Iglesia sopla
um viento del sur”, Teología 49
(2012), p. 101-172.
[31]
Y. CONGAR, Vraie et fausse reforme dans
l’Église, Paris, Cerf, 1968, p. 251.
Salta aos olhos
a vastidão deste tema. Pois, seja a riqueza da temática presente na Exortação
Apostólica do papa Francisco, sejam as numerosas e variadas atividades
pastorais desenvolvidas por nossa Igreja, exigiriam um estudo mais completo e
um tempo mais longo de exposição. Por isso mesmo, tivemos que optar por um
determinado enfoque que possibilitasse nossa exposição. Uma opção subjetiva,
portanto incompleta e sujeita a correções. Não nos deteremos naquilo que já
constitui uma realidade positiva na Igreja em nosso país. Buscaremos, isto sim,
examinar os estímulos que podemos receber da Exortação Apostólica Gaudium Evangelii em vista de uma maior
sintonia com a Igreja Universal e de um melhor desempenho em nossa missão
apostólica. Para isso examinaremos como os fundamentos desta Exortação Apostólica
estão já presentes na eclesiologia do Concílio Vaticano II e também,
especialmente, no Documento de Aparecida. Naturalmente compete à CNBB
concretizar as orientações do papa Francisco para o nosso contexto. Portanto,
neste ponto, apenas farei breves menções em forma de perguntas.
Começaremos com
uma parte inicial, de cunho histórico, para que melhor possamos compreender de
onde parte a iniciativa de renovação
eclesial do atual pontífice. Não podemos entender o presente senão à luz do
passado. O conhecimento das transformações de cunho institucional ocorridas no
passado nos torna mais receptivos às mudanças que os tempos atuais nos pedem.
Numa segunda parte exporemos temáticas que nos parecem marcantes no texto do
papa Francisco. Reconheço, de antemão, que certamente faltarão algumas questões,
ou que algumas delas mereceriam um tratamento mais cuidado.
1. O que nos ensina a história
A história é
fundamental para compreendermos a sociedade e a Igreja em que vivemos. Pois
acertos e erros do passado repercutem ainda fortemente em nossos dias. A Igreja
é uma realidade humano-divina. Enquanto divina
existe por iniciativa do próprio Deus e goza de características que definem sua
identidade teológica: a fé na pessoa de Jesus Cristo, a proclamação da Palavra
de Deus, a missão pelo Reino de Deus, a celebração dos sacramentos,
especialmente do batismo e da eucaristia, o ministério ordenado, a comunidade
dos fiéis. Porém ela é também uma comunidade
humana, encarnada na história, já que seus membros vivem em contextos
socioculturais e existenciais concretos. Somente enquanto são filhos da
sociedade onde vivem, dispõem de uma linguagem, de instituições sociais, de
parâmetros de comportamento que possibilitam tanto a convivência humana, quanto
professarem e viverem sua fé cristã como comunidade eclesial. Só configurando
sua identidade teológica ao contexto onde se encontra pode a Igreja ser captada e entendida como Igreja, e,
portanto, realizar sua missão de proclamar a salvação de Jesus Cristo para o
mundo. Caso contrário ela será vista como realidade arcaica, peça de museu, não
significativa nem pertinente para nossos contemporâneos.
E a história nos
comprova que as sociedades, as mentalidades, as instituições sociais, as
linguagens, os parâmetros de comportamento, se
transformam e se sucedem no curso dos anos. E a Igreja deve poder ser
captada, entendida, experimentada pela sociedade como sinal, sacramento da
salvação de Jesus Cristo para o mundo. Caso contrário ela será considerada
realidade do passado, que nada tem a dizer para a vida atual. Portanto, ela
deve mudar sua configuração institucional
para manter sua identidade de mediação salvífica, que é afinal o sentido de sua
existência. Daqui se explicam as mudanças históricas ocorridas no culto, nas
expressões doutrinais, na organização comunitária, nas linhas pastorais, no
serviço da caridade. Daí a afirmação de que a Igreja vive um processo histórico contínuo de
institucionalizar a si própria. Se tivermos dificuldade em aceitar as mudanças
que urgem é porque uma determinada configuração institucional histórica condiciona nossa compreensão da própria
Igreja, incapacitando-nos imaginá-la diferente. Época de mudanças é igualmente
época de resistências a mudanças.
As mudanças
institucionais já aconteceram nos primeiros séculos devido aos diversos
contextos das comunidades cristãs, mas a era
constantiniana representa um marco decisivo na história da Igreja. Antes
tolerado, disperso e perseguido, o cristianismo é elevado a religião oficial
dotada de favores e benefícios, assumindo então do império a sua estrutura
organizativa. O clero recebe importantes privilégios, os bispos são equiparados
aos senadores e desempenham mesmo funções administrativas civis, o papa adquire
posição imperial com as insígnias correspondentes, a liturgia adota um
cerimonial com muitos elementos provenientes da corte. Sem negarmos as
vantagens desta mudança para a propagação da fé e o fortalecimento
institucional da Igreja, devemos observar, entretanto, que a comunidade dos
fiéis passa a ser simplesmente a própria sociedade, entendendo-se por Igreja a
Igreja dos clérigos. Desaparece a distinção Igreja e sociedade e emerge mais
fortemente outra: a distinção de clero e laicato no interior da Igreja. Nesta
época se valoriza muito a dimensão institucional plasmada pelo regime feudal
estritamente hierarquizado: categorias de pessoas, status e prestígio social,
fatores que em parte persistem até nossos dias.
A intromissão
dos príncipes na nomeação dos bispos e os abusos do clero provocarão como
reação a reforma gregoriana,
alicerçada em princípios jurídicos para poder enfrentar o poder civil, que
marcará profundamente a eclesiologia até hoje. Também a tendência ao
centralismo papal se deve às mesmas razões, tornando a sede romana o eixo pelo
qual Deus realiza seu desígnio salvífico, eixo este sustentado pelas estruturas
jurídicas do feudalismo, que diminui bastante o papel dos bispos e das Igrejas
Locais com relação a realidade do primeiro milênio. A época posterior à contrarreforma fortalece a forma monárquica
de governo reforçando as prerrogativas papais. Igreja significa cada vez mais a
própria instituição e a hierarquia, sendo uma sociedade perfeita apta a
realizar sua finalidade. O advento da modernidade
questionará seriamente a posição da Igreja na sociedade, privando-a de sua
anterior influência em muitos setores, de seus privilégios, do monopólio da
educação e da assistência social. A perda do poder “para fora” é compensada por
um aumento do poder “para dentro”, seja do papa, das congregações romanas, dos
núncios apostólicos. Havia então um clima de hostilidade com relação à
modernidade, vista como inimiga da Igreja. Esta concentrava sua ação em se
defender da sociedade hostil, em se perpetuar em sua configuração tradicional,
em enfatizar o doutrinal e o jurídico, em controlar o espaço de liberdade e de
reflexão em seu interior.
João XXIII
intuiu bem que esta situação era absurda e que levaria a Igreja a se tornar um
gueto na sociedade moderna. Daí conclamar o Concílio
Vaticano II que aceita dialogar com a sociedade civil, avaliar a cultura da
modernidade assumindo alguns de seus elementos, atualizar sua pastoral levando
a sério o contexto vital dos católicos, promover a inculturação da fé e as
Igrejas Locais. O trabalho conjunto de uma plêiade de bispos e teólogos de
grande competência recuperou as riquezas da teologia patrística, renovando a
noção de revelação, da própria Igreja, da sua relação com o mundo, do culto
litúrgico, do papel do laicato na missão eclesial, do diálogo com outros
cristãos e com outras religiões. Embora muitas conquistas deste Concílio tenham
chegado até nossos dias, sabemos que os anos turbulentos que se seguiram deram
azo a uma reação posterior, que acentuou
novamente a centralização romana, o controle da teologia, a hegemonia
hierárquica, a uniformização da liturgia e o modesto papel do laicato. Não nos
cabe julgar nossos antecessores e menos ainda suas intenções. Apenas constatar
os fatos.
Vejamos de modo
muito breve e incompleto a situação no Brasil. A união da Igreja e da Coroa na
época colonial, no tempo do padroado, fez com que a Igreja se apoiasse no
Estado e acabasse sendo vítima de uma fragilidade institucional, de uma
pastoral de manutenção, de um pertencimento católico sem compromisso por parte
do laicato. A crônica escassez de clero, as extensas regiões do país, a
deficiente evangelização da população, irão ser remediadas em parte pela
piedade medieval trazida de Portugal e responsável pela religiosidade popular
do nosso povo. Portanto um catolicismo fortemente devocional como hoje
constatamos. Com o advento da república a Igreja perde as regalias, mas ganha a
liberdade. As mudanças ocorridas pela crescente modernização a partir de 1955
levarão a Igreja nos anos seguintes a se ocupar mais com as classes populares,
a denunciar os abusos de autoridade do regime militar, a lutar pelos
marginalizados na linha das Assembleias Episcopais do CELAM, a promover as
Comunidades Eclesiais de Base, embora estas opções pastorais tenham
experimentado certo esfriamento nos últimos anos. O aumento de evangélicos,
sobretudo pentecostais, a histórica passividade do laicato, a falta de leigos/as
bem formados, o escasso contingente de clero para um país continental, a
controvertida estrutura paroquial nos grandes centros, as crescentes
desigualdades sociais, as rápidas e sucessivas transformações da sociedade e
uma deficiente formação do clero para enfrentá-las, eis alguns dos desafios que
hoje encontramos.
Por outro lado o
nosso atual contexto sociocultural não é exatamente o mesmo da época do
Vaticano II. A atual sociedade se encontra sujeita ao critério supremo da razão
que decai facilmente no racionalismo.
Além disso, devido à forte hegemonia do setor econômico, vivemos uma
racionalidade de cunho funcional
voltada para a produtividade e o lucro. Acrescentemos ainda que a atual cultura
pluralista com abundante oferta de
sentidos e de orientações descarrega sobre o indivíduo o ônus de escolher que
direção dar a sua vida, que referencias e valores construirão sua
autobiografia. E constatamos como os imperativos do bem-estar, da felicidade
pessoal, do prazer imediato, do consumismo marcam a vida de muitos de nossos contemporâneos.
No momento em que os membros da Igreja estão
vivendo nesta atual sociedade que os
faz experimentar desafios existenciais, pluralidade de discursos, ausência de
referências sólidas, condicionamentos culturais, individualismo reinante,
excesso de informações, aceleração do tempo, superficialização da vida, é somente
nesta situação concreta que poderão
viver sua fé. Se continuarmos a insistir numa linguagem inadequada e
ininteligível, embora correta e ortodoxa, em elaborarmos discursos doutrinários
e morais sem considerar devidamente as pessoas concretas, em dar mais valor à
letra do que ao espírito, então a mensagem evangélica perde seu fascínio, sua força atrativa, sua
potencialidade de despertar esperança e felicidade, de aliviar sofrimentos e
encorajar iniciativas benéficas. Então as novas gerações poderão sentir-se distanciadas
desta instituição do passado, pesada, moralista, cujo discurso nem sempre é respaldado
por seu testemunho de vida. O recurso a eventos de forte carga emotiva, em si
positivo, pode enganar se não for seguido por um trabalho de evangelização em
profundidade e de compromisso cristão no mundo.
2. A Igreja desejada pelo papa Francisco
Embora nos
limitemos às linhas eclesiológicas presentes na Exortação Apostólica “A Alegria do Evangelho”, observemos que este
texto pós-sinodal sobre a Nova Evangelização é apresentado pelo papa Francisco
como um texto que “possui um significado programático e tem consequências
importantes” (24). De fato já no início ele declara que a Exortação quer
“indicar caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos” (1). Mesmo
reconhecendo de antemão que não poderemos abordar todos os pontos de seu
programa, vamos tratar de alguns deles que nos parecem mais pertinentes.
A. Uma Igreja missionária e descentrada
Todo o sentido
da vida de Jesus Cristo foi proclamar e realizar o Reino de Deus na humanidade. Sem este objetivo central sua pessoa
se torna ininteligível. Este projeto salvífico de Deus, que já tivera início no
Antigo Testamento, chega a sua plenitude na pessoa de Jesus Cristo, que em suas
ações e palavras revela o gesto salvífico do Pai, seu amor e sua misericórdia
incondicionada. Este Reino implica assumir o comportamento de Jesus que “passou
por este mundo fazendo o bem” (At 10,38), mas conota também uma dimensão social, pois o indivíduo só
pode ser feliz numa sociedade que reconheça e concretize o amor fraterno e a
justiça. Esta tarefa de proclamar e realizar a Boa-Nova constitui o objetivo da evangelização e foi confiada
por Jesus a seus discípulos e seguidores. Estes, portanto, constituem uma
comunidade de fiéis, constituem a Igreja.
Com outras palavras, todo o sentido da Igreja é estar a serviço da implantação
do Reino de Deus; ela não é fim, ela é meio, instrumento de Deus, sinal e
sacramento da salvação, pois deve visibilizar que este Reino não é uma utopia,
mas uma realidade no interior da história da humanidade pelo testemunho de vida
dos cristãos.
Daí a afirmação
do papa Francisco: “a ação missionária é o
paradigma de toda a obra da Igreja” (15). Com outras palavras, o salvífico é prioritário de tal modo que
o doutrinal, o jurídico e o institucional estão a seu serviço e dele recebem
seu sentido último. Esta era a convicção do próprio Jesus de Nazaré na crítica
feita à religião de seu tempo. Esta era também a preocupação dos participantes
do Concílio Vaticano II. Esta é ainda a razão de fundo para os pronunciamentos
e decisões deste atual papa. Palavras como participação, descentralização,
diálogo, espírito de serviço, sensibilidade humana, proximidade aos pobres e
marginalizados, brotam de sua preocupação central com o Reino de Deus.
O papa Francisco considera a Igreja como “de
saída”, a qual em sua estrutura e em sua atividade se torne “um canal
proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à sua autopreservação”
(27), sabendo “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as
periferias que precisam da luz do Evangelho” (20). Os evangelizadores devem
contrair “o cheiro das ovelhas” (24). Daí o apelo à renovação de toda a sua
pastoral (11), que pressupõe “uma conversão pastoral e missionária” na linha do
Documento de Aparecida (25). Como não é fácil romper com a inércia do status quo bem conhecido e familiar, o
papa convida “todos a serem ousados e criativos” (33) nesta tarefa de repensar
a ação pastoral da Igreja.
Na fidelidade às
diretrizes do Documento de Aparecida a Igreja do Brasil, nas últimas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora, se
considera “uma Igreja em estado permanente de missão” (DGAE 3.1), insistindo na
formação de uma “consciência missionária” (DGAE 31), no anúncio do querigma (DGAE
32), na necessidade do testemunho pessoal (DGAE 33), na renovação das
estruturas (DGAE 34) e na missão como fonte de todas as atividades (DGAE 35).
Portanto, em perfeita sintonia com a Exortação Apostólica. Porém permanecem
certas questões: estamos realmente convencidos desta verdade, nós todos, clero
e laicato? Existem condições suficientes na Igreja para todos os católicos
assumirem ativamente sua responsabilidade missionária? Não damos a impressão de
nos preocuparmos com o enunciado doutrinal e com a norma canônica, em si necessários,
mais do que com o anuncio da pessoa de Jesus Cristo? Não esconde o peso
estático da instituição eclesial a verdade de uma comunidade viva e
missionária? Não se encontra diminuído em parte do clero o zelo pastoral pelo
impacto da atual sociedade (80)?
B. Uma
Igreja configurada colegialmente
Já no Concílio
Vaticano II era evidente a preocupação dos bispos em equilibrar a noção do primado conforme definida no Vaticano I
e que ficara incompleta pela interrupção forçada deste Concílio. Basta que examinemos
o número de intervenções sobre este tema. Mesmo sem entrarmos em detalhes e
discussões posteriores podemos afirmar que a Constituição Dogmática Lumen Gentium fundamenta uma importante
revalorização do corpo episcopal. Os bispos recebem o cargo de ensinar,
santificar e governar do próprio Senhor
Jesus Cristo, e não indiretamente do Papa, como se afirmava anteriormente,
não podendo ser considerados “vigários do Sumo Pontífice” (LG 27), embora só
possa ser exercido tal múnus em comunhão com a Cabeça e com os demais membros
do colégio episcopal. Esse colégio com o Papa constitui a instância da
autoridade suprema na Igreja, embora o Papa conserve seu poder primacial (LG
22). Consequentemente as Igrejas Locais podem ser por si mesmas sujeitos de
pleno direito, bem como responsáveis pelas demais, sobretudo de sua região, o
que na linha das antigas Igrejas patriarcais irá constituir as Conferências
Episcopais (LG 23).
O papel da sede romana como sinal da unidade da
Igreja é de fortalecer a comunhão entre as Igrejas Locais, não assumindo suas
funções e competências. No primeiro milênio da Igreja era viva e atuante essa “eclesiologia de comunhão”, sendo que a
estrutura patriarcal mantinha a diversidade e a unidade da Igreja. O patriarca
num regime sinodal, isto é, com os demais bispos, resolvia as questões de cunho
litúrgico ou de direito canônico. A uniformidade do direito eclesiástico, da
liturgia e o controle das sedes episcopais por Roma não provêm necessariamente
do primado como tal.
Embora a
doutrina conciliar tenha produzido mudanças que revalorizaram o episcopado no
seio da Igreja (Sínodo dos bispos, Conferências Episcopais nacionais e
regionais) não podemos negar um retrocesso
para uma centralização indevida. Tal já aparece no Novo Código de Direito Canônico (1983) que teve que completar o que
os padres conciliares não fizeram, a saber, a forma jurídica das reformas
desejadas, fazendo-o entretanto de modo
unilateral prescrevendo estreita dependência dos bispos com relação ao
Papa. O motu proprio Apostolos suos
(1998) retira das Conferências Episcopais seu magistério doutrinal, exigindo
unanimidade nas decisões, e privando-as de desempenhar um papel análogo ao dos
patriarcados. A fragilidade de certas Igrejas Locais, sua incapacidade para
enfrentar problemas doutrinais, o impacto de uma sociedade pluralista, podem explicar em parte esta preocupação
do governo da Igreja, mas suas funestas
consequências são experimentadas por todos nós: nomeação de bispos que
fortalecessem esta centralização romana, incentivo ao carreirismo eclesiástico,
volta a uma Igreja de poder e prestígio, esfriamento de sua dimensão profética,
queda em seu compromisso com os mais pobres, ênfase em seu aspecto
institucional e jurídico, emergência de um clero mais voltado para o culto e o
poder.
O papa Francisco
pleiteia na linha de Aparecida uma reforma
das estruturas, as quais devem ser “mais missionárias” (27), pois “há
estruturas eclesiais que podem chegar a condicionar um dinamismo evangelizador”
(26). E afirma incisivamente: “Uma centralização excessiva, em vez de ajudar,
complica a vida da Igreja e sua dinâmica missionária” (32). Com relação às
Conferências Episcopais seu pensamento é claro: “O Concílio Vaticano II afirmou
que, à semelhança das antigas Igrejas Patriarcais, as Conferências Episcopais
podem ‘aportar uma contribuição múltipla e fecunda, para que o sentimento
colegial leve a aplicações concretas’ (LG 23). Mas este desejo não se realizou
plenamente, porque ainda não foi suficientemente explicitado um estatuto das
Conferências Episcopais que as considere como sujeitos de atribuições
concretas, incluindo alguma autêntica autoridade doutrinal” (32). E acrescenta noutra parte: “Não convém que o
Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas
que sobressaem nos seus territórios” (16).
Creio que o papa
espera uma maior colaboração das Conferências Episcopais para o desempenho de
seu múnus petrino. Alguns exemplos: a nossa Igreja apresenta uma ausência de
celebração da eucaristia em muitas comunidades. Mesmo reconhecendo nelas a
presença atuante da Palavra de Deus, como deveria o episcopado brasileiro
tratar desta lacuna? Ou considerar uma possível revisão da linguagem litúrgica
que pudesse realmente ser entendida pelo nosso povo? Ou ainda pleitear uma
maior participação das Igrejas Locais na nomeação de novos bispos?
C. Uma
Igreja inculturada
Intimamente
relacionada com a Igreja Local está a questão da inculturação da fé. Vejamos. A
iniciativa salvífica de Deus só chega a sua meta quando é livremente acolhida pelo ser humano na fé. Só temos propriamente
revelação ou Palavra de Deus no interior de uma resposta de fé, ela mesma fruto
da ação de Deus em nós. Portanto, o acolhimento na fé é parte constitutiva da revelação; sem ela os eventos salvíficos
seriam meros fatos históricos, a Palavra de Deus seria palavra humana e a
pessoa de Jesus Cristo nos seria desconhecida, como o foi para os fariseus de
seu tempo. Porém o ser humano que professa sua fé vive necessariamente num
contexto sociocultural que lhe fornece linguagem, valores, padrões de
comportamento, vida social e capacidade de se desenvolver como ser humano.
Portanto, ao captar e acolher a Palavra
de Deus o ser humano o estará fazendo necessariamente dentro de sua cultura
própria. Assim só podemos encontrar a Palavra de Deus ou o Evangelho já inculturados.
Sendo a fé o
fundamento da comunidade eclesial, como nos ensina Santo Tomás de Aquino,
encontra-se a Igreja enquanto comunidade
de fiéis inevitavelmente no interior de uma cultura que determinará como
seus membros entendem e vivem a fé cristã. Deste modo a Igreja Local implica sempre uma Igreja inculturada. Portanto, se
ela quer ser entendida como sinal da
salvação ela deve assumir a linguagem, as categorias mentais, os gestos, os
costumes, o saber e as artes da cultura onde se encontra inserida, como tanto
insistia João Paulo II. Entretanto a cultura não é uma realidade estática, mas
propriamente um processo, devido aos novos desafios de dentro e de fora que a
atingem. Portanto deve a comunidade eclesial saber acolher em si as
transformações necessárias para poder levar a cabo sua missão. O Concílio
Vaticano II expõe este ensinamento no Decreto Ad Gentes sobre a atividade missionária da Igreja (AG 15; 22).
Francisco acolhe sem mais a antropologia cultural
subjacente ao texto conciliar e termina taxativamente: “A graça supõe a
cultura, e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe” (115). Deste
modo “o cristianismo não dispõe de um único modelo cultural, mas permanecendo o
que é, (...) assumirá também o rosto das diversas culturas e dos vários povos
onde for acolhido e se radicar” (116). E fazendo suas as afirmações anteriores
de João Paulo II sobre esta temática assevera que “cada cultura oferece formas
e valores positivos que podem enriquecer o modo como o Evangelho é pregado,
compreendido e vivido” e assim manifesta a Igreja sua catolicidade (116). Reconhece
o papa que o processo de inculturação é lento e exige das Igrejas Locais
criatividade e ousadia (129). Pensemos em nosso país com uma rica diversidade
cultural (DGAE 73), mas que, apesar de algumas iniciativas locais, emprega as
mesmas expressões, os mesmos ritos, as mesmas linhas pastorais. Não seria o
momento de reivindicar certa liberdade para os regionais da CNBB assumirem mais
as culturas locais? Não confundimos, às vezes, unidade com uniformidade (117)? Somos
fiéis a uma formulação, mas transmitimos realmente a substância da verdade
salvífica (41)? Buscamos novos sinais, novos símbolos, nova carne, para a
transmissão da Palavra de Deus (167)?
D. Uma
Igreja de discípulos missionários
Todos os membros
da Igreja constituem o Povo de Deus, todos estão portanto incumbidos de
proclamar a Boa-Nova de Jesus Cristo para a sociedade. Devemos corrigir uma
imagem de uma Igreja clerical ativa diante de um laicato passivo. Todos na
Igreja gozam de igual “dignidade e ação comum” (LG 32), todos participam
ativamente da ação evangelizadora da Igreja no mundo, sentido último da própria
comunidade eclesial que eles próprios constituem. Portanto, todos na Igreja (LG
30), pelo fato de serem batizados (LG 33), independentemente de sua condição no
interior dela, devem anunciar a salvação de Cristo e promover os valores
evangélicos na sociedade, sendo assim sujeitos
ativos na Igreja. Portanto, todo
católico é sujeito eclesial por ser batizado e não por alguma delegação
posterior da autoridade. Daí brota “o direito e o dever” de exercer seus
carismas para o bem dos homens e a edificação da Igreja (AA 3). A ação pastoral
no interior da Igreja vai ser incrementada nos anos posteriores ao Concílio
pela renovação dos ministérios, abrindo assim novos campos de atuação (catequese, promoção humana, obras de
caridade, coordenação pastoral, assessoria das mais diversas, animação
litúrgica, ensino teológico).
Observemos que o
Documento de Aparecida, no qual o atual papa teve influência direta como
presidente da Comissão de Redação, acolhe o ensinamento conciliar, reconhece os
leigos e leigas como “verdadeiros sujeitos eclesiais”, interlocutores
competentes entre a Igreja e a sociedade (DAp 497a), recomendando que os bispos
devam “abrir para eles espaços de participação e confiar-lhes ministérios e
responsabilidades” (DAp 211). Dotados de uma formação adequada (DAp 212), devem
os fiéis leigos/as “ser parte ativa e criativa na elaboração e execução de
projetos pastorais a favor da comunidade” (DAp 213), participando “do
discernimento, da tomada de decisões, do planejamento e da execução” (DAp 371).
Naturalmente o mesmo documento adverte para a necessidade de uma mudança de mentalidade de todos na
Igreja, especialmente da hierarquia (DAp 213).
Francisco em sua Exortação Apostólica deixa bem
claro que irá insistir nesta conquista do Concílio Vaticano II enfatizada na
Assembleia Episcopal em Aparecida: “Cada um dos batizados, independentemente da
própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito ativo
de evangelização” (120). A missão não é apenas um ornamento ou um apêndice na
pessoa do cristão; é algo que não se pode arrancar de si sem se destruir (273).
Mesmo mencionando a necessidade de uma melhor formação (121), o papa insiste na
evangelização pelo contato pessoal
(127), já que se trata de comunicar aos outros a própria experiência salvífica
do encontro com Jesus Cristo, à semelhança dos primeiros discípulos, da
samaritana e de Paulo (120). Mas também reconhece a dificuldade dos leigos/as
por não encontrarem espaço nas Igrejas Locais, em parte devido a um excessivo
clericalismo (102). Sem dúvida alguma a Igreja no Brasil carece de um laicato
bem formado, não só com atuação restrita às tarefas pastorais tradicionais, mas
realmente empenhado em testemunhar sua fé nos areópagos modernos, sobretudo nos
campos do saber e nos locais onde atuam. O que falta? Incentivo da hierarquia?
Liberdade de expressão? Deficiência intelectual nos responsáveis? Força do
clericalismo? Trabalhamos realmente para convencer os leigos/as, mesmo os mais
simples, de que são capazes para a missão?
Priorizamos uma sólida formação do clero, humana e espiritual, filosófica e
teológica, mesmo tendo que rever as estruturas desta formação (Discurso do papa
ao episcopado brasileiro n.4)? Como tornar tal formação não apenas algo a ser
sabido, mas principalmente a ser vivido?
E. Uma
Igreja que testemunhe na vida a sua fé em Jesus Cristo
Sem desconhecer
os exemplos de tantos cristãos que viveram sua fé de modo autêntico e generoso,
não podemos deixar de caracterizar a Igreja que herdamos como uma realidade na qual o doutrinal dominava o
existencial, o jurídico se impunha ao sacramental, o institucional prevalecia
sobre o místico, certo tradicionalismo impedia renovações urgentes, o medo da
novidade impedia o eclodir de novos caminhos evangelizadores, a mentalidade do
poder eclesiástico emudecia a verdade do serviço eclesiástico. Toda renovação
eclesial implica um retorno ao mais nuclear da fé cristã, à vivência cristã das primeiras comunidades,
talvez encobertas pelas doutrinas, normas, regulamentações, tradições que se
lhes agregaram ao longo da história, certamente para explicitar e salvaguardar
este núcleo evangélico, mas que não deixaram de obscurece-lo por ocuparem um
lugar central que não é o seu. Este fato não passou desapercebido ao papa
Francisco, como iremos ver.
Primeiramente
ele enfatiza a importância decisiva do Espírito Santo na vida da Igreja. De
fato, se a Igreja é a comunidade dos que creem em Jesus Cristo, então toda ela
está fundamentada na ação do Espírito
Santo. Pois só podemos confessar Jesus Cristo como Senhor pela ação do
Espírito Santo (1Cor 12,3). É a participação de todos no mesmo Espírito que
gera a comunhão (2Cor 13,13: genitivo objetivo). O Espírito que esteve presente
e atuante na existência de Jesus continua atuando hoje nos cristãos (LG 7).
Francisco distingue uma evangelização vista como “um conjunto de tarefas
vividas como obrigação pesada” da “evangelização
com espírito”, isto é, “com o Espírito Santo, já que Ele é a alma da Igreja
evangelizadora” (261). E completa: “Para manter vivo o ardor missionário, é
necessária uma decidida confiança no Espírito Santo”, pois “não há maior
liberdade do que a de se deixar conduzir pelo Espírito”, “permitindo que Ele
nos ilumine, guie, dirija e impulsione para onde Ele quiser” (280).
Numa época
marcada pela inflação de palavras através dos vários meios de comunicação
social e também de certo ceticismo com relação às ideologias e cosmovisões,
ganha a experiência pessoal um peso
enorme para fundamentar as convicções pessoais. Esta realidade atinge também a
fé dos cristãos. Esta resulta de uma iniciativa de Deus de vir ao nosso
encontro, doando-Se a si próprio em Jesus Cristo e no Espírito Santo,
iniciativa que se realiza plenamente ao ser acolhida pelo cristão na fé.
Portanto a fé é um evento salvífico
na vida da pessoa que é, de certo modo, por ela experimentado. Esta experiência
atinge o coração de cada um, não só dando sentido à existência humana, mas
também consolando, fortalecendo e iluminando os que a fazem. É a experiência do
amor, da bondade e da misericórdia de Deus, realidade prioritária e fundamental
em nossa vida. O papa bate na mesma tecla ao enfatizar a importância da
experiência pessoal com Jesus Cristo, do amor de Deus que Ele nos revela. Em
suas palavras: “O verdadeiro missionário (...) sabe que Jesus caminha com ele,
fala com ele, respira com ele, trabalha com ele” (266).
Ao iniciar sua
vida pública Jesus proclama: “Completou-se o tempo, e o Reino de Deus está
próximo. Convertei-vos e crede na Boa-Nova” (Mc 1,15). É uma conversão intimamente relacionada com o
Reino de Deus, pois significa acolher na fé a salvação definitiva de Deus na
pessoa de Jesus Cristo como núcleo da própria existência. Esta conversão deve
estar presente na vida do cristão como uma atitude
de fundo que o acompanha sempre. E também na vida da Igreja, seja em sua consciência,
seja em suas instituições. Esta exigência aparece claramente no Documento de
Aparecida, tanto em seu aspecto pessoal (DAp 366), que inclui uma mudança de
mentalidade eclesial por parte de todos, especialmente do clero (DAp 213),
quanto em sua dimensão institucional (DAp 365), acionada pelo que o texto chama
de conversão pastoral. Francisco
demonstra clara consciência do desafio da renovação eclesial e conclama todos a
uma “conversão pastoral e missionária” na linha de Aparecida (25). Entretanto o
papa inova ao apontar bem concretamente o que necessita de
conversão: mundanismo espiritual dos que buscam a si próprios, a glória humana
e o bem-estar pessoal sob as aparências de religiosidade (93), uma fé
prisioneira de um racionalismo subjetivo ou de “uma suposta segurança doutrinal
ou disciplinar que dá lugar a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em
vez de evangelizar, se analisam e classificam os demais” (94). Menciona ainda o
exibicionismo na liturgia, na doutrina e no prestígio da Igreja, o fascínio das
conquistas pessoais e autorreferenciais, bem como das estatísticas e das
avaliações. E termina: “Quem caiu nesse mundanismo olha de cima e de longe,
rejeita a profecia dos irmãos, desqualifica quem o questiona, faz ressaltar
constantemente os erros alheios e vive obcecado pela aparência” (97). E
conclui: “Deus nos livre de uma Igreja mundana sob vestes espirituais e
pastorais!” (97). Os objetivos de conversão elencados pelo papa são bastante
claros. Incumbe-nos saber como realizá-los. Como valorizar o papel do Espírito
Santo na vida e na missão dos fiéis? Como levar adiante uma pastoral
mistagógica? Como proporcionar um encontro pessoal de cada um com Jesus Cristo?
Como fazê-lo ultrapassar uma religião de práticas e normas? Como ser uma Igreja
da “misericórdia gratuita” (114)? Como combater o individualismo que atinge a
todos nós na Igreja (DGAE 22) e viver a gratuidade do amor cristão?
F. Uma
Igreja dos pobres
Conhecemos a
tentativa de um grupo de bispos, por ocasião do Concílio Vaticano II, em promover uma maior simplicidade e
austeridade na Igreja. Estavam bem conscientes de que muitos símbolos de poder
e riquezas foram se agregando ao longo dos séculos à instituição eclesial.
Contudo tais esforços apenas resultaram numa pequena menção, meio perdida no
interior de um texto conciliar: “... assim como Cristo realizou a obra da
redenção na pobreza e na perseguição, assim a Igreja é chamada a seguir pelo
mesmo caminho para comunicar aos homens os frutos da redenção” (LG 8).
Entretanto sabemos também que os bispos latino-americanos, na linha traçada
pela Gaudium et Spes voltaram-se para
a sofrida existência da grande população deste subcontinente e através das Assembleias Gerais do CELAM (Medellin,
Puebla, Santo Domingo, Aparecida) enfatizaram a opção pelos pobres, a luta por
uma sociedade mais justa, a denúncia de ideologias desumanizantes. Certos
exageros de cunho ideológico e certa resistência em abandonar vantagens
adquiridas propiciaram uma reação por parte do Vaticano. Bispos e padres mais
identificados com a causa dos pobres viram-se olhados com suspeita, criticados
e mesmo marginalizados, arrefecendo assim todo um ardor de cunho eminentemente
evangélico.
Felizmente em
Aparecida os bispos participantes reagiram, não se contentando com uma Igreja
voltada para os pobres, mas exigindo que o imperativo da pobreza evangélica
atingisse também as pastorais e as instituições da Igreja. E a razão dada era
sempre a mesma: “A Igreja deve cumprir sua missão seguindo os passos de Jesus e
adotando suas atitudes” (DAp 31). O texto reconhece que nos afastamos do
Evangelho e que devemos adotar “um estilo de vida mais simples, austero e
solidário, mais fiel à verdade e à caridade” (DAp 100h). Para que essas belas
palavras não permaneçam inócuas, sem verdadeira incidência em nossos
comportamentos e decisões, é necessário que se manifestem em opções e gestos concretos, tais como
saber escutar os pobres, dedicar-lhes tempo, acompanha-los nas horas mais
difíceis (DAp 397). Não se nega que isto já esteja acontecendo, mas aqui se
trata de urgir toda a Igreja, seu modo de vida, sua atividade pastoral e suas
estruturas, mesmo reconhecendo que o problema da pobreza no mundo é bastante
mais complexo. Quando será a Igreja verdadeiramente a “casa dos pobres de Deus”
como afirma o texto de Aparecida (DAp 524)?
Ao tratar da
dimensão social da evangelização no capítulo IV da Exortação Apostólica o papa Francisco inicia com uma afirmação
que diz tudo: “Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (176).
Pois o mesmo não é apenas uma realidade espiritual, mas atinge o ser humano em
todas as suas dimensões, de tal modo que afirma mais adiante: “Deus, em Cristo,
não redime somente a pessoa individual, mas também as relações sociais entre os
homens” (178); daí que “na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida
social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para
todos” (180). De fato, no Novo Testamento se exprime a absoluta prioridade da
‘saída de si próprio para o irmão’ como um dos fundamentos de toda norma moral
e critério de crescimento espiritual (179). Daí o papa poder afirmar: “Uma fé
autêntica, que nunca é cômoda ou individualista, comporta sempre um profundo
desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor
depois da nossa passagem por ela” (183).
O papa lembra que
“cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus a
serviço da libertação e promoção dos pobres” (187) e insiste na palavra “solidariedade” enquanto expressa “uma
nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de
todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns” (188), sobretudo hoje
quando experimentamos na sociedade “um novo paganismo individualista” (195). Assim
não nos admira que Francisco tenha recebido fortes críticas de certos setores
da sociedade. Ele retoma com força a opção pelos pobres ao afirmar sem rodeios:
“desejo uma Igreja pobre para os pobres” e reafirma a experiência da Igreja
latino-americana de que os pobres nos evangelizam (198). Para ele o anuncio do
Reino hoje só se torna significativo e
digno de fé se for acompanhado de uma proximidade real com os pobres (199).
Termina lamentando o que estes últimos sofrem por falta de cuidado espiritual
(200). Daí nos perguntarmos: num mundo onde a maioria da população carece dos
bens necessários a uma vida digna, como levar a Igreja a uma vida simples e
sóbria? Como evitar que caia no “mundanismo espiritual” (207) por não se ocupar
com os mais pobres? Como formar o clero para resistir à tentação de ascensão
social, poder e consumo de bens, incutida pela atual sociedade? Como ir ao
encontro dos marginalizados, dos inúteis, dos excluídos da atual sociedade?
Como disse ao
início desta exposição, ela não exaure toda a riqueza temática da Exortação
papal, mas procurou deixar clara a intenção do atual pontífice de empreender
uma renovação eclesial. E certamente
a colaboração de cada um de nós será certamente decisiva para a missão da
Igreja em prol do Reino de Deus.
REFORMA
ECLESIAL E MÍSTICA DA FÉ
Experimentamos hoje
como mudou a vida numa sociedade marcada pela aceleração do tempo, pelo
bombardeio contínuo de novas informações, pela hegemonia de uma racionalidade
de tipo funcional, pelo livre pluralismo de mentalidades e opiniões, pela
consequente erosão de valores e de referências sólidas, pela ambiguidade do
sagrado no âmbito social, enfim, fatores estes que levaram muitos de nossos
contemporâneos a viverem num mundo
fechado a qualquer realidade transcendente, como tão bem analisou Charles
Taylor[1].
Para completar o quadro poderíamos acrescentar o afã por dinheiro, a impiedosa
concorrência professional, o excesso de horas de trabalho, a aceleração da vida
cotidiana, tudo provocando uma superficialidade de vida e um consumismo desenfreado.
Reconheçamos também que nesta platitude
unidimensional da atual sociedade emergem vozes, algumas delas sem
referência alguma a Deus, que clamam por justiça no mundo, que anseiam por
sentido em suas vidas, que denunciam a destruição do meio ambiente, que se
comprometem com os mais pobres e que lutam pela paz em nosso planeta.
Por outro lado, sem que
possamos generalizar, convivemos com uma Igreja moldada estruturalmente com
forte influência do feudalismo, da época da cristandade, com seus acertos e
deficiências, cristalizados em devoções, práticas e ritos, bem como num
predomínio do doutrinal, do jurídico e do estritamente hierárquico. O Papa
Francisco em sua Exortação Apostólica Evangelii
Gaudium denuncia já certa ênfase no administrativo, no sacramental, no
institucional (EG 63) que pode gerar uma Igreja mundana sob vestes espirituais
ou uma aparência religiosa vazia de Deus (EG 97). Em nossa atual sociedade tais
características dificultam sobremaneira que a Igreja seja captada em sua
autêntica verdade, em sua realidade salvífica, em sua missão de propagar o
Reino de Deus e de humanizar a sociedade. A renovação eclesial passa
necessariamente por uma nova configuração institucional[2],
mantidos seus componentes teológicos provenientes da revelação, que permita
melhor transparecer a comunhão dos fiéis, a participação ativa de todos seus
membros, a incumbência missionária de todo batizado.
Nossa reflexão pretende
abordar apenas um ponto que nos
parece central para uma autêntica
reforma da Igreja. Poderíamos justifica-lo a partir da valorização da experiência pessoal como referência mais
confiável na atual inflação de discursos que se relativizam e mutuamente se
destroem. Entretanto o motivo decisivo que nos levou à escolha deste tema
provém da própria fé cristã. O cristianismo nasceu da experiência salvífica dos
primeiros discípulos com a pessoa de Jesus Cristo. E é esta experiência de Deus
que mantém viva a fé cristã ao longo da história. Faltando este encontro
pessoal com Deus, este acolhimento consciente de sua autodoação divina, a
Igreja estaria reduzida a realidades externas que não se sustentam a si mesmas
sem estarem referidas a este núcleo experiencial presente na vivência da fé. Tentação
forte, pois nos detemos mais facilmente no que é visível, mensurável, explicável,
do que naquilo que se situa num nível mais profundo da realidade e das pessoas,
tentação essa também atuante quando consideramos a Igreja.
Iniciaremos
apresentando como o Papa Francisco demonstra ter captado este desafio da atual
sociedade ao enfatizar a mística da fé
como elemento fundamental em sua reforma eclesial. Numa segunda parte vamos fazer
emergir a fundamentação teológica das
afirmações deste papa. Primeiramente oferecendo o fundamento primeiro de toda a
nossa reflexão, a saber, a concepção
cristã do ser humano. Em seguida examinando como nesta antropologia concebida
à luz da revelação estão implicados Jesus
Cristo e o Espírito Santo. No interior deste quadro salvífico de fundo aparecerá
a fé vivida como uma experiência mística primordial,
presente, atuante e decisiva tanto na reflexão teológica quanto na pastoral da
Igreja. Somente então poderemos melhor compreender e valorizar a insistência do
Papa Francisco em prol de uma vivência autêntica da fé por parte dos cristãos.
1.
A mística da fé: coração da reforma eclesial de Francisco
Para Francisco o núcleo
da fé cristã está “no amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo” (EG
36), constituindo seu “anúncio fundamental” (EG 128) e o centro da
evangelização e da reforma da Igreja (EG 164). Este anúncio é anterior a qualquer
obrigação moral e religiosa (EG 165)[3]. Ter
fé consiste em acolher este amor primeiro,
em “responder a Deus que nos ama e salva” (EG 39), que nos dá o sentido da vida
(EG 8) e uma alegria profunda (EG 7). Nesta experiência iluminada pela pessoa e
pela vida de Jesus Cristo nasce “uma relação pessoal e comprometida com Deus”
(EG 91), experiência esta que faz do cristão um evangelizador (EG 120).
Deste modo o Papa
reconhece o perigo de termos uma Igreja encerrada em estruturas, normas e
hábitos (EG 49), com predomínio do aspecto administrativo e sacramentalista (EG
63), podendo acabar “submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado em
práticas religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios” (EG 207). Seu objetivo é o que ele expressa como “recriar a adesão mística da fé” (EG 70).
Pois sabe que é inútil querer transmitir uma imensidade de doutrinas a força de
insistir (EG 35). Pois “não é possível empenhar-se em coisas grandes apenas com
doutrinas, sem uma mística que nos anima, sem uma moção interior que impele,
motiva, encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária” (LS 216).
Naturalmente o Papa não
esconde que acolher na fé e na vida o amor gratuito de Deus nos leva a fazer de
nossa vida uma aventura, porque Deus é e será sempre mistério para o ser humano que jamais pode abarca-LO num conceito,
mas que pode ser encontrado no próprio caminhar da vida de fé. Basta que
façamos uma leitura à luz da fé em nossas vidas para detectarmos a presença
atuante de Deus em nossa história, embora de modo misterioso. Nas palavras do
próprio Papa: “A atitude correta é a agostiniana: procurar a Deus para O
encontrar e encontra-LO para O procurar sempre”[4].
Daí o erro de querer fixar Deus numa tradição, numa visão estática, numa
segurança doutrinal, fazendo da fé uma ideologia, pois Deus está na vida de
cada pessoa. Daí também a necessidade do discernimento[5].
Pois Deus está presente nas casas, ruas e praças da cidade, pois “acompanha a
busca sincera que indivíduos e grupos efetuam para encontrar apoio e sentido
para a sua vida. Ele vive entre os citadinos promovendo a solidariedade, a
fraternidade, o desejo de bem, de verdade, de justiça” (EG 71). Não podemos reduzir
a missão a um projeto empresarial ou a uma organização humanitária, pois “o
Espírito Santo trabalha como quer, quando quer e onde quer” (EG 279).
Importante mesmo é nele confiarmos, invocando-o constantemente e “permitindo
que Ele nos ilumine, guie, dirija e impulsione para onde Ele quiser” (EG 280).
Pois a ação do Espírito desperta nas pessoas e nos povos a ânsia de conhecer a
verdade acerca de Deus, do ser humano, da libertação do mal. Pois todos fomos
criados para o que nos propõe o conteúdo essencial do Evangelho: o amor a Deus
e o amor fraterno (EG 265).
Naturalmente a atração
exercida por Deus, através do Espírito Santo, em todos os seres humanos se
mostra nos “inúmeros sinais da sede de Deus, do sentido último da vida, ainda
que muitas vezes expressos implícita ou negativamente” (EG 86). Porque “a fé
conserva sempre um aspecto de cruz, certa obscuridade que não tira a firmeza da
adesão” (EG 42). E esta atração pode também se expressar erradamente num
“consumismo espiritual à medida do próprio individualismo doentio”, num culto a
“Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro”, com “propostas
alienantes” que “não humanizam”, a tal ponto que “mais do que o ateísmo, o
desafio hoje é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas” (EG
89).
Daqui podemos entender
a ênfase do Papa no valor da religiosidade
popular enquanto tem como protagonista o próprio Espírito Santo (EG 122), responsável
pelo instinto da fé (sensus fidei)
(EG 119)[6], e
enquanto traduz uma sede de Deus que somente os pobres e os simples podem
experimentar, capacitando-os para a generosidade e o sacrifício (EG 123). Trata-se,
portanto, realmente de uma “mística popular”, expressa por símbolos simples, porém
acentuando “mais o credere in Deum que
o credere Deum” (EG 124), a saber, a
reta intencionalidade da fé ao acolher a oferta salvífica de Deus na força do
Espírito, proporcionando-lhe uma singular força missionária.
Já que a fé cristã é o
acolhimento não de ideias, mas do próprio Deus que se doa a nós, este
acolhimento implica também de nossa parte uma doação a Deus na pessoa de nosso
próximo. Com isso crescemos no conhecimento de Deus (1 Jo 4,7), descobrimos
algo de novo sobre Deus (EG 272), e sobretudo demonstramos a autenticidade da
nossa fé, pois “uma fé autêntica, que nunca é cômoda ou individualista,
comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar
a terra um pouco melhor depois de nossa passagem por ela” (EG 183). Não podemos
ficar prisioneiros somente de ideias ineficazes, que “classificam e definem,
mas não empenham” (EG 232). A Palavra se encarnou em Jesus e deve continuar se
encarnando ao longo da história, através de obras de justiça e caridade nas
quais Ela se torna fecunda (EG 233). Pois “uma relação pessoal e comprometida
com Deus nos compromete ao mesmo tempo com os outros” (EG 91). Daqui podemos
entender a afirmação do Papa Francisco, tão importante em nossa atual cultura
imanente e submissa ao consumismo: “Estou convencido de que, a partir de uma abertura à transcendência, poder-se-ia
formar uma nova mentalidade política e econômica que ajudaria a superar a
dicotomia absoluta entre a economia e o bem comum social” (EG 205).
Se fossemos sintetizar
a concepção evangelizadora do Papa Francisco, sua compreensão da atividade
missionária da Igreja, sua visão da própria vida cristã, podemos afirmar que
ela deve partir de uma experiência
pessoal de Deus, de uma vida transfigurada pelo Espírito Santo, de uma
pastoral que arranca de uma mística, a mística de um Deus que é amor e
misericórdia, fonte de alegria e de paz (EG 6) e que constitui a realidade que
devemos levar aos demais (EG 264).
2.
A teologia subjacente aos pronunciamentos do papa Francisco
Em qualquer
pronunciamento do magistério eclesiástico, em qualquer exposição da fé, em
qualquer pregação cristã que não se contente em repetir trechos da Escritura,
estará inevitavelmente embutida uma
concepção teológica, uma compreensão ampla e sistematizada do rico e variado manancial
oferecido pelos textos sagrados. É função do teólogo fazer emergir esta
compreensão de fundo que não só justifique o texto do magistério, mesmo
eventualmente apontando suas lacunas, mas sobretudo valorizando suas afirmações
feitas numa linguagem mais pastoral ao apresentar as sérias e profundas bases
teológicas das mesmas. Este é o nosso objetivo nesta segunda parte deste
estudo.
A.
A concepção cristã do ser humano
Quando nos perguntamos
pela razão última de nossa existência, ou em outras palavras, porque fomos
criados, devemos reconhecer que tudo devemos ao amor absolutamente livre e gratuito de Deus que nos chamou à
existência. Pois, sendo Ele a autodeterminação absoluta, Deus não pode ser
movido por nada fora de si. Existimos, portanto, porque Deus quis que participássemos
de sua felicidade. A humanidade, e o universo como seu entorno, expressam já o amor infinito de Deus por suas criaturas,
fato este que não passou desapercebido a muitos místicos cristãos. Mas a
revelação nos diz mais.
Pois a pessoa de Jesus Cristo em sua vida, palavras e
ações, em seu ensinamento e em seu comportamento revela um relacionamento peculiar com Deus, a quem invoca como seu Pai e para o qual orienta toda a sua
existência. Mais em concreto implica este relacionamento que Jesus é distinto do Pai a quem se submete, a
quem entrega sua vida, a quem reconhece como o único Deus. Sua missão consistiu
exatamente em levar toda a humanidade a reconhecer e acolher esta soberania de Deus, a participar da
realização do Reino de Deus, tal como nos atestam os Evangelhos.
Porém em Jesus Cristo
encontramos não só o relacionamento do homem Jesus com seu Pai, mas também o
relacionamento do Filho eterno de Deus
no interior da Trindade. Pois este relacionamento filial é simultaneamente do
âmbito criado e do âmbito intradivino, já que tudo o que afirmamos da segunda
Pessoa da Trindade tem aqui seu fundamento; de fato, não dispomos de outro acesso à pessoa do Filho eterno de
Deus. Aceita esta afirmação podemos examina-la não na nossa, mas na perspectiva
de Deus. Então aparece que o Filho eterno do Pai, enquanto distinto do Pai, pôde
sair de Deus Trino ao se encarnar e conservando sua eterna atitude filial tornar
possível e fundamentar a existência dos seres humanos que, como Cristo, conscientemente
reconheçam também a Deus como Pai e para Ele vivam. Por igual razão, enquanto
entorno necessário e condição de possibilidade da existência da humanidade, também
todo o restante mundo criado[7].
Assim o Filho eterno de
Deus é a razão de ser da humanidade de Jesus enquanto criada, e é também a
razão de ser de toda humanidade e de toda a realidade criada, como nos ensina o
Novo Testamento (1 Cor 8,6; Cl 1,15-18a; Jo 1,1-3). Observemos ainda que o amor
do Pai, responsável por toda a criação, é o mesmo amor que tem por seu Filho
desde toda a eternidade. Pois o primeiro destinatário do amor do Pai é seu próprio
Filho e, em seu Filho, todas as demais criaturas. Portanto este amor que nos
alcança é sempre intermediado por seu Filho, seu dinamismo é essencialmente
paternal, sendo que nossa resposta ao mesmo deve ser sempre filial, semelhante à
de Jesus de Nazaré. Aqui temos um critério decisivo para a autenticidade da fé
cristã. Uma fé no Deus de Jesus Cristo, uma fé plasmada na fé de Cristo (Hb
12,2)[8],
uma fé crística.
Deste modo a afirmação
veterotestamentária de que o ser humano foi criado à “imagem de Deus” (Gn
1,26), deve ser completada por S. Paulo que nos assevera ser Jesus Cristo a
imagem de Deus (2 Cor 4,4) e, somente como “imagens de seu Filho” (Rm 8,29)
participam os seres humanos da semelhança com Deus. O cristianismo antigo considerava
assim Cristo como arquétipo à imagem do qual foi criado o primeiro homem. Diríamos
hoje que nossa matriz é Jesus Cristo.
Daí a importante declaração do Concílio Vaticano II: “Cristo manifesta
plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre sua altíssima vocação” (GS
22). Portanto a compreensão cristã do ser humano nos diz que ele é alguém ontologicamente voltado para Deus, à
semelhança de Jesus Cristo. Este fato diz respeito a todos os seres humanos e antecede qualquer adesão ou recusa de cunho
religioso.
Entretanto o quadro
ainda não está completo. Vejamos. Por estarmos inseridos numa tradição
ocidental do cristianismo e sem pretendermos entrar na questão do “Filioque”,
acostumamo-nos a uma pneumatologia cristológica, na qual o Espírito Santo procede do Pai e do Filho e é enviado pelo Filho em
vista da economia salvífica. Porém ao examinarmos atentamente os Evangelhos
constatamos que o Espírito esteve presente e atuante também durante toda a vida
de Jesus. Primeiramente, na linha dos profetas e dos “homens de Deus”
considerados portadores do Espírito de Javé, Jesus expulsava demônios e curava
enfermos porque a “força” de Deus ou o “Espírito” de Deus estava com ele (Mc
5,30; Lc 11,20; Mt 12,28).
A narração do batismo demonstra que esta presença do
Espírito não se dava só temporariamente nas curas, mas era uma realidade
permanente na vida de Jesus já no início de sua missão pelo Reino (Mc 1,11) e
que irá acompanha-lo sempre, impelindo-o ao deserto (Mc 1,12) e inspirando-o em
toda sua atividade (Lc 4,18; At 10,38). Aqui está implícita uma experiência de
Jesus com o Espírito tornando-o consciente de sua vocação e missão. Neste
Espírito acontece também o relacionamento do Pai com Jesus (meu Filho muito
amado) e de Jesus com o Pai (Abba, Pai). Portanto sua livre entrega na paixão e
na morte de cruz aconteceu “em virtude do Espírito eterno” (Hb 9,14). E é este
mesmo Espírito que o ressuscita dos mortos (Rm 1,1-4; 1 Tm 3,16; 1 Pd 3,18).
Assim Cristo se torna “espírito vivificante” (1 Cor 15,45), a saber, Cristo
ressuscitado vive do e no Espírito eterno e o divino Espírito da vida atua nele
e por Ele. Deste modo Cristo passa a ser o “Espírito vivificante” e o Espírito
passa a ser o “Espírito de Jesus Cristo” (Rm 8,9; Gl 4,6). Enquanto ressuscitado
Cristo envia (Jo 16,7), sopra (Jo 20,22) e derrama o Espírito (At 2,23).
Por conseguinte, a ação
do Espírito experimentada pelos primeiros cristãos é marcada por Cristo,
leva-os a se relacionarem com Cristo, a reconhecer Cristo como Senhor (1 Cor
12,3), a acolher na fé pela experiência do Espírito a oferta salvífica de Deus
em seu Filho. A fé é obra do Espírito o qual, entretanto, não é visto, como
também não vemos os olhos com que enxergamos.
Esta cristologia
pneumatológica equilibra uma pneumatologia cristológica dominante na tradição
ocidental. Pois o Pai é Aquele que envia o Espírito (Jo 14,16; 14,26), o qual
pode então ser confessado como “o Espírito da verdade que procede do Pai” (Jo
15,26). Deste modo podemos afirmar que o Pai gera o Filho em virtude do
Espírito eterno e sopra o eterno Espírito na presença do Filho. Pois se o
Espírito procede do Pai, este proceder pressupõe o Filho já que o Pai só é Pai
em sua relação com o Filho. Se o Filho é gerado pelo Pai, o Espírito acompanha
a geração do Filho e através dele se manifesta[9].
Deus enquanto Trindade em seu ser e em sua ação salvífica também deverá estar
presente e ser fator determinante na resposta do ser humano ao gesto divino de
se auto doar. É o que veremos a seguir.
B.
A fé como resposta do ser humano à autodoação de Deus
Portanto o ser humano
tem sua identidade última em sua vocação divina, em ser interlocutor de Deus, em
acolher este Deus amor que o atrai. Mas este é o Deus manifestado em Jesus
Cristo e experimentado no Espírito Santo. Portanto, a abertura do ser humano ao
Transcendente, sua sede de infinito e de perfeição, é determinada trinitariamente, se é realmente cristã.
Enfatizemos novamente
que este anseio, esta nostalgia, este élan, não pode ser eliminado de uma
adequada antropologia sem que se desfigure o próprio ser humano. Pois este desejo
de Deus é essencial ao ser humano, embora ele não o tenha por direito e nem
seja capaz de satisfaze-lo por suas próprias forças. Trata-se apenas de uma
capacidade de acolher, vazia e impotente para adquirir o que deseja. O “éros”
não se opõe[10]
à “ágape”, pois apenas exprime a condição humana, pressuposto para a recepção gratuita do amor de Deus. Assim se evita
tanto o extrinsecismo quanto o imanentismo.
A fé é a resposta do
ser humano a esta atração de Deus possibilitada pelo próprio Deus. Sob a ação
do Espírito Santo e à semelhança de Jesus Cristo o ser humano confia, se
abandona, se deixa dispor e orientar por Deus, já presente em sua sede de
absoluto. A fé possui inevitavelmente uma dimensão que poderíamos chamar de mística, num sentido amplo, mas
intrínseco à própria fé cristã. Pois sendo Deus Transcendente é Ele Mistério
para o ser humano. E como vimos anteriormente que a criação tem na encarnação
do Filho de Deus o seu fundamento último, encarnação esta que é obra do
Espírito Santo (Lc 1,35), o acolhimento do Mistério
que é Deus se revelou em Jesus Cristo na fidelidade ao Espírito nele presente e
atuante. Jesus Cristo não desfaz o Mistério de Deus já que Deus não se submete
à lógica humana (Mt 20,1-16) e se revela sub
contrario na fraqueza, no escândalo e na loucura da cruz aos que têm fé
(1Cor 1,18-31). Portanto também em Jesus Cristo Deus permanece Mistério: Ele
habita em luz inacessível (Rm 1,20; Cl 1,15) e seus pensamentos são insondáveis
(Rm 11,33).
Portanto a revelação é
o desvelar-se do mistério de Deus como mistério de amor, como mistério de uma
liberdade absolutamente soberana, como mistério que se doa sem perder sua
transcendência. Aquele que crê não “sabe” mais sobre Deus, mas tem plena
lucidez sobre o mistério de Deus e sobre sua ignorância. Ele interpreta o élan
que o habita à luz da pessoa de Jesus Cristo (Jo 1,9), embora constate a seu redor
outras interpretações desta mesma realidade, seja em sistemas filosóficos, seja
em tradições religiosas. Importante aqui é reconhecer e valorizar a dimensão mística inerente à própria fé
enquanto opção voltada para o Mistério de amor que é Deus, porque por Ele
previamente atraída. Não podemos conceber a vida cristã desprovida de sua
dimensão mística[11]
e a pastoral da Igreja deveria estar muito mais atenta a esta verdade em seus
objetivos e planificações. Nas palavras de Bento XVI: “a fé cresce quando é vivida
como experiência de um amor recebido e é comunicada como experiência de graça e
de alegria”[12]Também
a Palavra de Deus é sempre uma interpelação de amor, uma entrega divina de si.
Ela interpela a criatura humana, plasma sua existência e lança-a num itinerário
jamais completamente terminado nesta vida[13],
pois a experiência de fé provoca novas experiências sempre se superando em
direção ao Deus sempre maior[14]
Observemos ainda que a
fé cristã por estar voltada para Deus que é transcendente e mistério necessita
de símbolos que a identifiquem, a expressem, a celebrem. De fato, o símbolo
aponta para além de si próprio, embora partilhe em si mesmo a realidade simbolizada,
de tal modo que esta está nele presente e atuante[15]. Podemos
mesmo dizer que tudo no cristianismo é simbólico: a Bíblia, os sacramentos, a
comunidade eclesial, os dogmas de fé, a pregação, as celebrações, já que
ultrapassando sua materialidade remetem o ser humano para o Mistério de Deus.
Sendo Deus Mistério de amor são tais símbolos sinais salvíficos que devem ser
captados e aceitos como tais. Deste modo se faz necessária e urgente toda uma pedagogia cristã, catequese mistagógica
diziam os antigos, que possibilite a postura realmente cristã na escuta da
Palavra de Deus e na celebração dos sacramentos, especialmente da eucaristia. O
sinal é sempre mediação e convite para a experiência salvífica. Caso contrário
ficamos retidos na exterioridade do sinal, não chegamos realmente a Deus, não
vivemos a mística da fé. Conhecemos os sinais, mas para nós eles não são
realmente salvíficos.
C.
Fé, mística e teologia
A relação entre a
mística da fé e a teologia é bem mais íntima do que poderíamos imaginar[16].
Pois, sendo Deus transcendente e mistério para o ser humano, qualquer discurso
sobre Deus que mereça o nome de teo-logia deve arrancar da experiência fundante
da fé ao acolher a amorosa e gratuita autodoação divina por ação do próprio
Deus (Espírito Santo) em nós. Esta experiência que não se deixa enunciar é a
que nos permite expressar este Mistério em enunciados, numa palavra, fazer
teo-logia[17].
Esta é e será sempre segunda, já que a presença da ação de Deus no que crê é
afinal o que fundamenta o discurso teológico. O vivido antecede o crido: lex orandi, lex credendi. A teologia não
só se alimenta da mística, mas sua função não é propriamente esclarecer o
mistério (tarefa impossível), mas alimentar a fé do cristão levando-o a
reconhecer e a adorar o Mistério que o atrai. Neste sentido a teologia está a
serviço da mística, já que a revelação de Deus não consiste num pacote de
verdades, mas na vinda de Jesus Cristo, mistério de Deus a nós doado. Acolher
na fé este mistério é a tarefa central da teologia, já que neste mistério da
pessoa de Jesus Cristo estão os demais mistérios (Ef 3,4s)[18].
Daqui decorrem
igualmente os limites do labor teológico, pois este jamais conseguirá traduzir
o mistério para o conceito, torna-lo submisso aos limites da razão, penetra-lo
em sua profundidade. As verdades de fé, os dogmas cristãos, enquanto enunciados
a nosso alcance, serão sempre passíveis de compreensões mais ricas, que nunca
saciarão a inteligência humana. Todo discurso teológico, enquanto teo-lógico, é um discurso inacabado, é
uma expressão da verdade divina tendendo para a mesma[19],
contendo formulações que podem ser ultrapassadas e impedem encerrar
uniformemente a verdade divina num sistema fechado. Cada geração descobre sua
plenitude na vivência e na experiência sempre novas, sem querer imobiliza-la no
tempo, mas reconhecendo a historicidade de nossa percepção e a riqueza
insondável do mistério cristão[20]. Tentação
aqui seria a teologia querer fixar o mistério de Cristo em personagens
acessíveis, em quadros interpretativos transitórios, que nos satisfazem, mas que
nos impedem o acesso ao mistério e à sua autêntica vivência.
O dinamismo anagógico
para o Mistério que nos atrai torna o trabalho teológico para a compreensão da
fé uma luta sem fim, fadada à derrota, mas aceita com paz e alegria. É um
lançar-se num oceano sem esperança de atingir a outra margem, pois ela não
existe. Pois Deus está presente sem ser visto, é encontrado quando ainda o
buscamos. Estamos às voltas com uma inteligência
espiritual da verdade revelada já que acontece pela ação do Espírito Santo,
podendo deste modo ser encontrada na fé dos mais simples. Também fica clara a
distinção entre teologia e ciências da religião, já que estas últimas não
partem da fé, da experiência do Mistério, da iluminação que dele provém, sendo,
entretanto, úteis e pertinentes em seu campo epistemológico, mas falhando
quando se aventuram para além do mesmo.
D.
Sentido da fé e religiosidade popular
O nosso tema está
intimamente relacionado com o conhecido “sensus fidei”, sobre o qual já existe
uma abundante bibliografia[21]
de modo que não trataremos explicitamente desta questão. Interessa-nos, isto
sim, considera-la na mesma ótica seguida até aqui. Pois constatamos que emerge
fortemente da bibliografia anterior uma mesma perspectiva de leitura, a saber,
de cunho mais cognoscitivo e doutrinal.
Naturalmente tal compreensão do sentido da fé, já presente na tradição da
Igreja e recentemente valorizada pelo Concílio Vaticano II (LG 12), é
perfeitamente justa e de modo algum pode ser omitida. Dela decorre a riqueza da
fé de todo o Povo de Deus que
ultrapassa mesmo as expressões da teologia ou do magistério eclesiástico[22], atua
no desenvolvimento da doutrina e da prática cristã, na contribuição do laicato
para a fé da Igreja, na mútua relação entre magistério e teologia, na
transmissão da fé (DV 8). Mesmo sem pretendermos enunciar todas as consequências
desta leitura mais generalizada, já podemos avaliar sua importância para a vida
da Igreja. Entretanto faz-se mister enfatizar uma outra dimensão do sentido da fé no horizonte até aqui apresentado
da autodoação de Deus amor. Vejamos.
Já que todo e qualquer
ser humano é constituído enquanto tal por um élan voltado para o Absoluto e
como este Absoluto consiste num Deus que é autodoação amorosa e que o interpela
por uma resposta, atingindo tal autodoação divina o íntimo, o coração de cada
pessoa, então sua aceitação na fé não diz respeito somente à inteligência, mas
alcança todas as demais faculdades
humanas, e mais concretamente a própria afetividade. A inquietação do ser
humano, para usar uma formulação agostiniana, provém de sua própria
constituição antropológica, antes mesmo que ele busque expressá-la em
conceitos, palavras e imagens. Como vimos anteriormente a acolhida do gesto
divino na fé é a base necessária para todo discurso posterior sobre Deus.
Quanto mais autêntica for esta acolhida, quanto mais concretizada na vida for
esta fé, quanto mais plenificada na caridade, maior será a percepção do
infinito amor de Deus em seu íntimo. Mas esta percepção não dissolve o Mistério
que é Deus, daí que suas expressões são sempre inacabadas, abertas a leituras
complementares, dóceis à ação livre do Espírito Santo[23],
pois a Igreja “tende continuamente para a plenitude da verdade divina” (DV 8).
A cultura fechada de
nossos dias não consegue enxergar a pertinência de uma realidade transcendente
que traga sentido para a vida humana, cultura esta que põe em crise as
representações tradicionais de Deus e que limita a noção de ciência ao que é
objeto de experiência controlável. Este horizonte cultural pede da Igreja uma
atenção maior à experiência da fé do
indivíduo, que se dá na comunidade eclesial e chega a sua realização no amor ao
próximo, na doação de si ao Outro e aos outros, em correspondência com a
autodoação divina que é afinal o amor infinito. Pois a fé em Deus nos descentra
de nós mesmos, leva-nos a viver diante do Mistério, liberta-nos de nossas
certezas e seguranças, sensibiliza-nos para as carências de nossos próximos,
lança-nos na ação capaz de remediá-las.
Naturalmente a
experiência do Mistério na fé poderá ser tematizada com expressões diversas conforme
os contextos socioculturais ao longo da história, embora elas permaneçam sempre
aquém do que procuram exprimir. Mesmo que reconheçamos a necessidade das
formulações para a identidade da fé cristã, mais importante é a experiência
mais primordial que as faz surgir por estar voltada para o próprio Deus. Pois a
tensão espiritual da fé é “o lugar interior das proposições de fé,
irrealizáveis sem este movimento interior”[24]. Daqui
o valor da religiosidade popular que,
na simplicidade ingênua de suas expressões conserva a referência a Deus, dá
testemunho de sua fé e mostra-se mais sensível aos valores evangélicos da
partilha e da solidariedade[25]. Portanto
a insuficiente formação cristã de muitos dos mais simples pode conviver com uma
autêntica vida de fé, com expressões que nos desconsertam, pois são as
mediações disponíveis para se relacionarem com Deus. No cristianismo a vida é
mais importante que o discurso.
Para o papa Francisco aparece com muita clareza que não haverá uma
eficaz reforma da Igreja sem uma vivência pessoal e autêntica da fé cristã.
Pois nesta experiência salvífica do encontro do ser humano com Deus que é amor,
temos não só o “centro da fé cristã” e o fator que explica o nosso seguimento
de Cristo[26],
mas também a razão de toda a ação pastoral da Igreja[27].
No passado notou-se, por várias razões, certa ênfase no aspecto doutrinal, moral
e jurídico da fé por parte da Igreja. Hoje, diante de uma sociedade tão sofrida
e tão injusta, tão carente de sentido e de valores, a Igreja deve manifestar o rosto misericordioso de Deus, deve ser
acolhedora para poder levar nossos contemporâneos a um encontro com Deus em
Jesus Cristo. Neste encontro então experimentarão o sentido de vida e a paz que
tanto buscam. Neste encontro provarão a mística da fé, a ação do Espírito de
Cristo que os leva ao outro necessitado. Neste encontro serão testemunhas do Transcendente,
portadores de sentido, transmissores da bondade divina. Terão experimentado a
fé existencialmente como realidade
gratificante e salvífica. Terão encontrado o Deus que é misericórdia e nos
transforma para sermos também misericordiosos, deixando aflorar em nossa vida e
em nossa pastoral a ternura de Deus[28].
Oxalá nós possamos trabalhar com o Papa Francisco em seu empenho em fortalecer
a mística da fé e renovar a Igreja Católica.
[1]
Ch. TAYLOR, Uma Era Secular, Ed.
Unisinos, S. Leopoldo, 2010, p. 634-696.
[2]
Sobre esta noção, ver: M. FRANÇA MIRANDA, A
Igreja numa sociedade fragmentada, Loyola, S. Paulo, p. 128-139; Id., A
configuração eclesial latino-americana: iniciativa do Espírito para a Igreja Universal?
Revista Teología 52 (2015) p. 118s.
[3] A.
SPADARO, Entrevista exclusiva do Papa
Francisco, Paulus/Loyola, S. Paulo, 2013, p. 22.
[4] A.
SPADARO, Entrevista, p. 28.
[5]
Ibid. p. 29.
[6] D.
VITALI, Una Chiesa di popolo: il sensus
fidei come principio dell’evangelizzazione, em: H.M. YANEZ SJ (ed.), Evangelii gaudium: il texto ci interroga,
Gregorian & Biblical Press, 2014, p. 53-66.
[7]
W. PANNENBERG, Systematische Theologie II,
Vandenhoeck&Ruprecht, Göttingen, 1991, p. 34-49; edição brasileira:
Teologia Sistemática II, Paulus/Academia Cristã, S. Paulo, 2009, p. 50-61.
[8]
U. von BALTHASAR, La foi du Christ,
Aubier, Paris, 1968, p. 13-79; J. SOBRINO, Cristologia
a partir da América Latina, Vozes, Petrópolis, 1983, p. 106-157.
[9] J.
MOLTMANN, O Espírito da Vida. Uma
pneumatologia integral, Ed. Vozes, Petrópolis, 2010, p. 77.
[10]
BENTO XVI, Deus caritas est, 7.
[11]
H. de LUBAC, Sur les chemins de Dieu, Paris,
Aubier, 1966, p. 193: “L’élan mystique n’est pas un luxe. Sans lui, la vie
morale risque de n’être qu’un refoulement, l’ascèse une sécheresse, la docilité
un sommeil, la pratique religieuse une routine, une ostentation ou une peur”.
[12]
BENTO XVI, Carta Apostólica Porta Fidei 7.
[13] Ibid. 6.
[14]
J. RATZINGER, Les Principes de la Théologie
Catholique, Tequi, Paris, 1982, p. 384-393.
[15]
R. HAIGHT, Dinâmica da Teologia, S.
Paulo, Paulinas, 2004, p. 149-167.
[16] Nesta
questão ver B. DUMAS, Mystique et
Théologie d’après Henri de Lubac, Paris, Cerf, 2013.
[17]
K. RAHNER, Über den Begriff des Geheimnisses in der katholischen Theologie, Schriften zur Theologie IV, Einsiedeln,
Benzinger, 1960, p. 70.
[18]
Ver já numa perspectiva sacramental, mas com uma pertinência ainda maior: F.
TABORDA, Da celebração à teologia. Por uma abordagem mistagógica da teologia
dos sacramentos, Revista Eclesiástica
Brasileira 64 (2004) p. 588-615.
[19]
“Perceptio veritatis revelatae tendens in ipsam”. Expressão assumida por TOMÁS
DE AQUINO, S. Th. II-II, q.1, a.6, sed contra.
[20]
J. RATZINGER, Comentário ao texto da Comissão Teológica Internacional El Pluralismo Teológico, BAC, Madrid,
1976, p. 15-20.
[21]
Ver a extensa bibliografia apresentada por D. TERRA, O Sentido da fé, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2009, p.
137-142, ou o amplo estudo sobre o tema por parte de W. BEINERT, Der
Glaubenssinn der Gläubigen in Theologie- und Dogmengeschichte. Ein Überblick,
em: D. WIEDERKEHR (Hrsg.), Der
Glaubenssinn des Gottesvolkes. Konkurrenz oder Partner des Lehramts?, Freiburg,
Herder, 1994, p. 66-131. Mais recentemente dispomos do texto da Comissão
Teológica Internacional, O Sensus Fidei
na vida da Igreja, S. Paulo, Paulinas, 2015.
[22]
K. RAHNER, Dogmatische Randbemerkungen zur “Kirchenfrömmigkeit”, Schriften zur Theologie V, Einsiedeln,
Benzinger, 1962, p. 391s.
[23] D.
Terra, ob. cit. p. 68.
[24]
J. RATZINGER, Comentário ao texto da Comissão Teológica Internacional, O Pluralismo Teológico, Loyola, S.
Paulo, 2002, p. 23.
[25]
PAULO VI, Exortação Apostólica Evangelii
Nuntiandi (1975) 48.
[26]
BENTO XVI, Carta Encíclica Deus Caritas
Est, 1.
[27] Ibid. 19.
[28] PAPA
FRANCISCO, Misericordiae Vultus (O rosto
da misericórdia) 10
Estamos diante de um texto que se impõe não só pela amplitude
das questões nele tratadas, mas também pelas incisivas afirmações teológicas
que apresenta. Nosso objetivo será fazer emergir nesta reflexão as linhas teológicas subjacentes à
Encíclica.
O texto papal utiliza o conhecido método “ver-julgar-agir”,
que também será empregado nesta nossa exposição. Pois, diante da preocupação
com o meio ambiente por parte da sociedade atual, que experimenta já os efeitos
devastadores no sistema ecológico do planeta devido a uma racionalidade
utilitarista e a uma tecnologia unilateral hoje dominantes, a encíclica papal
apresenta como tese de fundo a íntima
relação entre a dimensão ambiental e a dimensão social da questão. Danificar
a natureza implica também prejudicar o ser humano, gerando pobreza,
desigualdades sociais, marginalizações. Aqui está a novidade deste grito de
alerta do Papa Francisco.
Para melhor situá-lo vamos iniciar com uma breve descrição da
atual cultura enquanto nociva à
preservação da natureza e à convivência humana. Pois desmascará-la e combate-la
aparece como um dos objetivos principais desta Encíclica. Em seguida exporemos
muito concisamente as verdades fundamentais de uma teologia cristã da criação, assinalando como ela emerge frequentes
vezes ao longo do texto papal. Esta parte será completada por uma visão
escatológica da realidade criada, que reforçará a ênfase posta no valor da
criação segundo o desígnio de Deus. Esta visão cristã do tema nos possibilitará
uma crítica a certas soluções do problema que hoje encontramos. Finalmente
veremos como esta questão tão atual nos ajuda a melhor avaliarmos o alcance da
nossa fé cristã.
1. A cultura dominante
em nossos dias
Somos profundamente condicionados pelo contexto
sociocultural onde vivemos. Pois dele recebemos a linguagem, as referências que
orientam nossas vidas, nossos ideais, nossos anseios de realização, que, de um
lado, nos abrem perspectivas de vida, mas, de outro, nos limitam em nossa visão
do mundo, da sociedade e da história. Devemos muito mais do que pensamos à cultura
na qual estamos inseridos, no bom e no mau sentido. Pois todo conhecimento da
realidade pressupõe um olhar específico, uma chave de leitura, uma
interpretação, que já nos apresenta o objeto conhecido com uma inevitável
interpretação em seu bojo. Pois a realidade se desvela correspondentemente à
pergunta que lhe é dirigida, pergunta esta diversa no físico, no biólogo, no
psicólogo, no filósofo ou no teólogo. Portanto, toda leitura é parcial e deve
dialogar e ser completada pelas demais. Daí afirmar o Papa Francisco: “Uma ciência, que pretenda oferecer soluções
para os grandes problemas, deveria necessariamente ter em conta tudo o que o
conhecimento gerou nas outras áreas do saber” (LS 110).
Mas não é isto o que vemos em nossos dias. Hoje boa parte de
nossos contemporâneos é dominado por uma cultura individualista que leva a
pessoa a se preocupar sobretudo com a aquisição de bens materiais e com a busca
de uma felicidade pessoal sem ter consideração com os demais. A sociedade de
consumo não vê como problema a degradação do meio ambiente, a diminuição dos
recursos naturais, a responsabilidade para com as gerações futuras, as
consequências da devastação do hábitat humano para os mais pobres. Por detrás
da mesma está uma racionalidade de cunho utilitarista que busca produtividade e
eficácia a todo custo por meio de uma ciência técnica que desvaloriza tudo o
que não se alinha com seus objetivos. Trata-se de “um paradigma de compreensão que condiciona a vida das pessoas e o
funcionamento da sociedade” (LS 107). Sua lógica férrea tende a tudo controlar,
seja a natureza, seja a sociedade humana (LS 108). Tudo é considerado em função
do lucro, excluindo realidades que não se submetem, ou transformando-as em
mercadorias que faturam (carnaval, futebol, e até religião). Também a economia
é atingida por este rolo compressor já que “assume
todo o desenvolvimento tecnológico em função do lucro, sem prestar atenção a eventuais
consequências negativas para o ser humano” (LS 109). Daí a afirmação do
Papa Francisco: “Um desenvolvimento
tecnológico e econômico que não deixa o mundo melhor e uma qualidade de vida
integralmente superior não pode ser considerado progresso” (LS 194).
Portanto, “a política não deve
submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma
eficientista da tecnocracia” (LS 189).
No fundo estamos lidando com uma cultura que privilegia o
lucro em detrimento do ser humano e da natureza. Estamos lidando com uma chave
de leitura deformada que não consegue enxergar todas as dimensões da questão. Daí
o alerta da Encíclica: “A cultura
ecológica não se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para
os problemas que vão surgindo em relação à degradação ambiental, ao esgotamento
das reservas naturais e à poluição. Deveria ser um olhar diferente, um
pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma
espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático”
(LS 111). Fundamental para a solução do problema socioambiental é o próprio
ser humano, não enquanto submisso à atual cultura, mas enquanto consciente de
sua responsabilidade diante da natureza e de seus semelhantes. Portanto, nas palavras
do papa: “Não haverá uma nova relação com
a natureza sem um ser humano novo. Não há ecologia sem uma adequada
antropologia” (LS 118). E ainda enfatizando mais: “Muitas coisas devem reajustar o próprio rumo, mas antes de tudo é a
humanidade que precisa mudar. Falta a consciência de uma origem comum, de uma
recíproca pertença e de um futuro partilhado por todos. Essa consciência de
fundo permitiria o desenvolvimento de novas convicções, de novas atitudes e de
novos estilos de vida” (LS 202). Aqui se demonstra significativa,
pertinente, oportuna e necessária uma visão cristã da pessoa humana e da
natureza, que constituirá a segunda parte desta exposição.
2. O mundo criado à luz
da fé cristã
A realidade que conhecemos e experimentamos em nossa existência
e que abarca todos os seres criados não é uma realidade neutra, fruto do acaso,
mas resulta de uma opção livre de Deus, imune a qualquer motivação externa (pois
Deus é autodeterminação absoluta) e que só podemos pressentir como fruto de seu
gesto gratuito, livre, desinteressado, sem motivo ou razão, que constitui o
próprio mistério de Deus que é amor
infinito. Deus quis que também outras criaturas participassem de sua
felicidade. A realidade criada existe porque Deus a amou antes mesmo que
existisse. Como afirma o Papa Francisco: “A
criação pertence à ordem do amor. O amor de Deus é a razão fundamental de toda
a criação” (LS 77). Portanto, “a
criação só se pode conceber como um dom que vem das mãos abertas do Pai de
todos” (LS 76). Deste modo para a fé cristã a criação é uma realidade qualificada pois entra toda ela no
desígnio salvífico do Pai. Toda ela se encontra vocacionada para uma finalidade
que a transcende, toda ela é dotada de um dinamismo interno voltado para uma
plenitude querida pelo próprio Deus. Esta afirmação será explicada em seguida.
O primeiro ponto a ser
esclarecido diz respeito à finalidade
presente em qualquer criatura e que a direciona para uma realidade
transcendente, para o próprio Deus. Aqui devemos completar o quadro da criação
gratuita, já que a fé cristã nos atesta a presença do Filho de Deus no ato
criador do Pai. “Para nós só há um Deus, o Pai, de quem tudo procede e para o
qual nós vamos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual tudo existe e pelo qual
nós existimos” (1Cor 8,6). Ou também o texto de Colossenses: “Tudo foi criado
por Ele e para Ele, e Ele existe antes de tudo; tudo nele tem consistência” (Cl
1,16s). O mesmo repete o apóstolo João: “Tudo foi feito por meio dele; e sem
Ele nada se fez do que existe” (Jo 1,3). Como explicar esta presença ativa e
permanente de Jesus Cristo na criação a não ser que todo o mundo criado existe
devido ao desígnio divino da encarnação do Filho de Deus, projeto primeiro e
mais original que arrastaria necessariamente consigo a própria criação como
entorno, meio necessário para a existência do Verbo encarnado. Portanto, todo o
mundo criado existe porque Deus quis que seu Filho assumisse um corpo mortal.
Num sentido mais profundo e primordial a encarnação não se segue à criação, mas
a antecede e justifica. O que os textos acima afirmam é esta primazia de Jesus
Cristo na própria criação. Concluindo: fomos criados em Cristo. Entretanto esta
verdade está incompleta. Vejamos.
Durante sua existência terrena Jesus demonstrou com suas
palavras e com sua vida um amor total e perfeito ao Pai. Este seu
relacionamento único e singular com seu Pai implicou submissão, obediência,
confiança e entrega incondicionada à vontade de Deus. Esta afirmação não deve
ser atribuída somente ao Jesus histórico, pois é exatamente este Mestre de
Nazaré que nos revela a realidade intra-trinitária. Tudo o que sabemos da
Santíssima Trindade tem aqui sua fonte. Portanto o relacionamento filial e
obediente de Jesus com o Pai revela o relacionamento do Filho eterno de Deus no
interior da Trindade. Assim este relacionamento filial é simultaneamente da
esfera criada e da esfera divina.
Se toda a realidade existente foi criada em Cristo, por
Cristo e para Cristo, se nele ela tem o fundamento
último do seu simples existir, então toda a criação tem intrinsecamente uma
dimensão que poderíamos chamar de “crística”, a saber, toda ela se encontra
diante de Deus na mesma atitude de fundo da pessoa de Jesus Cristo: obediência
ao Criador, reconhecendo-O como Deus e honrando-O como Pai. Aqui está, do ponto
de vista teológico, o sentido e a identidade última de toda e qualquer
criatura, embora, devamos logo acrescentar, que só o ser humano tenha dela conhecimento.
Quanto mais nos aproximamos da existência história de Cristo, assumindo suas
atitudes e suas opções, tanto mais estaremos sendo não somente bons cristãos,
filhos do mesmo Pai, mas sim estaremos concretizando na história o que
constitui nossa identidade última de
seres humanos, nossa verdade e nossa felicidade. Daí a afirmação de Paulo:
“Pois aos que Ele conheceu desde sempre, também os predestinou a se
configurarem com a imagem de seu Filho, para que este seja o primogênito numa
multidão de irmãos” (Rm 8,29). Na mesma linha o Concílio Vaticano II: “Cristo
manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre sua altíssima
vocação” (GS 22). Entretanto o quadro ainda está incompleto.
Pois o ato criador de Deus criou não só o mundo, mas também o
tempo. Portanto ele se situa fora do tempo, numa palavra, é eterno. Como tal
continua ativo na história sob a denominação de criação contínua. Esta ação criativa permanente de Deus não só
conserva a existência de todos os seres criados, mas também é responsável pelo
agir dos mesmos. Nas palavras do Papa Francisco: “Esta presença divina, que garante a permanência e o desenvolvimento de
cada ser é a continuação da ação criadora” (LS 80). Por outro lado, a
Sagrada Escritura nos mostra o Espírito
Santo não só como criador junto com o Pai e o Filho (Sl 104,3O), mas também
como aquele que dá vida e ação às criaturas (Gn 2,7). E quando o Espírito de
Deus é retirado vem a morte (Sl 104,29; Jó 34,14s). Esta ação do Espírito atinge
toda a criação (Gn 1,2) e está, sobretudo, na origem de qualidades e dotes
humanos (Ex 31,3; 35,31).
E ainda mais. O Espírito de Deus atua não só para dar vida,
mas também para que toda criatura seja fonte
de vida. Pois sua atuação se revelou também na vida de Jesus, levando-o, na
obediência ao Pai, a lutar para que todos tenham vida, para que o Reino de Deus
se torne uma realidade na história. Semelhante
é sua ação na existência de todos os seres humanos. Trata-se de um dinamismo
imanente, presente em toda criatura, embora só seja percebido conscientemente
pelo ser humano. Já afirmava Paulo: “Se vivemos pelo Espírito, andemos também
sob o impulso do Espírito” (Gl 5,25).
Este mesmo Espírito enquanto fonte de vida é também garantia de
uma vida em plenitude: “Se o Espírito dAquele que ressuscitou Jesus dentre os
mortos habita em vós, Aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos dará também
a vida a vossos corpos mortais, por seu Espírito que habita em vós” (Rm 8,11).
Portanto o dinamismo do Espírito nas criaturas é leva-las à plenitude da vida. E como esse dinamismo
é um dinamismo crístico, como vimos, então alcançar uma eternidade de vida
plena e feliz implica assumir “o mesmo sentir e pensar” (Fl 2,5), a mesma
atitude fundamental de Jesus Cristo na obediência ao Pai em vista da promoção
do Reino de Deus.
Entretanto o ser humano é espírito e matéria. Portanto só
pode se realizar plenamente enquanto conserva seu corpo, pois o espírito se
realiza como espírito na matéria, a qual lhe possibilita relacionar-se com a
natureza, com os outros e com Deus. Portanto o ser humano só será plenamente
feliz se levar consigo seu entorno e sua história, constitutivos de sua existência
vivida, que assim deverão também participar da “glória dos filhos de Deus”. Portanto
também a natureza pelo dinamismo do Espírito que lhe é intrínseco está
destinada a participar da felicidade eterna e mesmo sua evolução ao longo da
história tem, no fundo, o mesmo Espírito como seu agente. Como diz a Encíclica
Laudato Sí: “O fim último das restantes
criaturas não somos nós. Mas todas avançam, juntamente conosco e através de
nós, para a meta comum, que é Deus, numa plenitude transcendente em que Cristo
ressuscitado tudo abraça e ilumina. Com efeito, o ser humano, dotado de
inteligência e amor e atraído pela plenitude de Cristo, é chamado a reconduzir
todas as criaturas ao seu Criador” (LS 83).
Aqui já podemos entender porque a ruptura do ser humano com o
desígnio salvífico de Deus, revelado em Jesus Cristo e acionado pelo Espírito
Santo, acaba por incidir danosamente não só sobre ele próprio e seus
semelhantes, mas também sobre a natureza. “A
violência, que está no coração humano ferido pelo pecado, vislumbra-se nos
sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos” (LS
2). O pecado é também negação do mundo criado querido por Deus e está na
origem da crise ecológica. Não se respeita a vocação profunda da natureza ao se
explorá-la irresponsavelmente em função do lucro, do poder, da ambição. No fim
o próprio ser humano será a vítima de sua insânia.
Depois do que vimos podemos melhor entender o texto de Paulo:
“Pois a criação espera com impaciência a
revelação dos filhos de Deus: entregue ao poder do nada, não por vontade
própria, mas pela autoridade daquele que lha entregou, ela guarda a esperança,
pois também ela será libertada da escravidão da corrupção, para participar da
liberdade e da glória dos filhos de Deus. Com efeito, sabemos: a criação
inteira geme ainda agora com dores de parto” (Rm 8,19-22). Aqui aparece claramente
como o pecado humano atinge também a natureza, que espera pela libertação dos
que a exploram indevidamente e geme já devido ao dinamismo do Espírito presente
e atuante em seu íntimo.
Em outra terminologia podemos dizer que toda a vida de Jesus
Cristo foi fazer irromper e irradiar o Reino
de Deus. Esta é também a finalidade da Igreja e a característica última de
todo cristão, sempre comprometido com uma missão. Sabemos que este Reino se
realiza na história pelo exercício do amor fraterno abrangendo tudo o que essa
noção implica. Portanto cuidar da natureza para que nossos semelhantes possam experimentar
uma vida digna, também faz parte do projeto de Deus para o mundo. Certamente a
realização plena deste Reino não ocorrerá nesta história seja pelas limitações
próprias da condição humana, seja pelo egoísmo, pela cobiça, pela vaidade que
dominam muitos seres humanos. Deste modo impedem uma sociedade fraterna e justa
ocasionando desigualdades sociais, empobrecidos e marginalizados, bem como
danos irreparáveis à própria natureza. Mas a construção do Reino futuro e
definitivo já tem início no interior da história, na luta por uma sociedade
mais justa e fraterna e por um respeito à natureza também chamada a participar
do “novo céu e da nova terra” (Ap 21,1), onde não haverá mais sofrimento (Ap
21,4) e Deus será “tudo em todos” (1Cor 15,28). Portanto não só a humanidade,
mas todo o mundo criado é chamado a constituir a nova sociedade em Deus, mesmo
que a teologia não consiga explicar satisfatoriamente como tal se dará. Como
tudo o que se refere à outra vida em Deus, também aqui estamos diante do
mistério, que é o próprio Deus.
3. Fé cristã e ecologia
A compreensão cristã da realidade criada enquanto destinada a
ser assumida na vida de Deus, ainda que contenha perguntas sem resposta quanto
ao modo como isto se dará, não se
isola num antropocentrismo autossuficiente, embora tal tenha ocorrido na
história do cristianismo. Hoje sabemos que houve uma compreensão errônea do
relato da criação no livro do Gênesis. O domínio do ser humano sobre o restante
do mundo criado não significa que ele possa explora-lo ilimitadamente em seu
proveito, acarretando a destruição de seu próprio hábitat, mas muito
simplesmente que lhe incumbe a tarefa de exercer
o governo, próprio de Deus criador, sobre o mundo criado. Ele é assim
chamado a ser representante, lugar-tenente de Deus, criado a sua imagem e
semelhança (Gn 1,26s). Como imagem deve corresponder ao governo divino sobre o
universo. Deste modo, o seu domínio sobre a natureza se encontra ligado ao
domínio de Deus. E este domínio não é um poder despótico sobre a natureza,
porque vem expresso de modo claro no próprio texto bíblico: “Iahweh Deus tomou
o homem e o colocou no jardim de Éden para o cultivar e guardar” (Gn 2,15).
Observemos bem: cultivar e preservar!
A criação do ser humano enquanto espírito num corpo, enquanto
espírito que necessita do corpo para sobreviver e para ter uma vida social,
exige que este mesmo ser humano consiga sua subsistência no recurso à natureza
que constitui seu entorno vital. Esta é louvada em toda a sua rica realidade
como fruto do amor de Deus: “Como são numerosas, Senhor, tuas obras! Tudo fizeste
com sabedoria, a terra está cheia das tuas criaturas” (Sl 104, 24). Esta
compreensão veterotestamentária é completada e aprofundada na visão
neotestamentária, como vimos anteriormente. Toda a criação se deu “em Cristo”,
primogênito de toda criatura, que determina enquanto tal o sentido último de
cada criatura. Todas têm uma característica “crística”, todas participam da
atitude filial de Jesus, todas estão num relacionamento
mútuo, todas são chamadas a participar também da glória e da vida eterna do
Ressuscitado. Este quadro só é rompido pelo egoísmo humano que explora as
demais criaturas a serviço de seus interesses, exaurindo os recursos naturais e
destruindo a convivência humana pelas injustiças sociais que ocasiona.
A Encíclica Laudato Sí expressa com muita clareza esta visão
cristã da realidade, uma visão sistêmica
que inclui natureza e sociedade: “Quando
falamos de ‘meio ambiente’, fazemos referência também a uma particular relação:
a relação entre a natureza e a sociedade que a habita. (...) Estamos incluídos
nela, somos parte dela e nela cointegrados. As razões, pelas quais um lugar se
contamina, exigem uma análise do funcionamento da sociedade, da sua economia,
do seu comportamento, das suas maneiras de entender a realidade. (...) É
fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas
naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma
ambiental e outra social, mas uma única e complexa crise socioambiental. As
diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a
pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e simultaneamente cuidar da
natureza” (LS 139).
É interessante que a Encíclica insista também no fator cultural que implica o patrimônio
histórico e artístico de um povo, elementos-chave para manter sua identidade
original. Pois a tendência da economia globalizada é “homogeneizar as culturas e debilitar a imensa variedade cultural que é
um tesouro da humanidade” (LS 144). Deste modo Francisco defende a
participação de cada cultura no processo histórico-evolutivo de cada povo,
respeitando sua noção própria de qualidade de vida. Pois “muitas formas de intensa exploração e degradação do meio ambiente
podem esgotar não só os meios locais de subsistência, mas também os recursos
sociais que consentiram um modo de viver que sustentou, durante longo tempo,
uma identidade cultural e um sentido da existência e da convivência social. O
desaparecimento de uma cultura pode ser tanto ou mais grave do que o
desaparecimento de uma espécie animal ou vegetal” (LS 145). Portanto a Encíclica traz uma proposta de ecologia integral, que abrange a
dimensão natural, social e cultural na compreensão do ambiente. Deste modo
considera o ser humano no interior de uma totalidade que deixa aflorar seu
essencial entrelaçamento com o meio ambiente e com a sociedade. Ela corrige
assim a racionalidade própria da ciência moderna que, para dominar a natureza,
trata de fragmenta-la em partes sempre menores para serem analisadas pelas
diferentes ciências. Deste modo compartimentaliza a realidade e perde uma visão
de conjunto (sistêmica), não avaliando devidamente os estragos feitos na natureza
pela intervenção humana e ocasionando assim a crise ecológica.
A compreensão sistêmica da Encíclica reprova também certa
visão antropocêntrica que vê na natureza um reservatório de recursos a serem
explorados e utilizados pelos seres humanos (LS 190). Nesse caso a defesa e a
conservação da natureza se revela insuficiente, pois se faz em nome de gerações
futuras para que também elas possam usufruir de tais recursos. Permanecemos
assim na ótica exploratória. Mas a Encíclica rejeita também outra visão do meio
ambiente, a saber, aquela que procura preservar os ambientes naturais impedindo
qualquer intervenção humana e transformando a natureza num museu a ser
apreciado. Certamente não é este o sentido da natureza.
A Encíclica atinge principalmente o núcleo da nossa questão
ao denunciar o atual modelo econômico como causa determinante da destruição
atual da natureza. “A proteção ambiental
não pode ser assegurada somente com base no cálculo financeiro de custos e
benefícios. O ambiente é um dos bens que os mecanismos de mercado não estão
aptos a defender ou promover adequadamente” (LS 190). Pois o modelo atual
de progresso busca somente o aumento da produção de bens, o aumento do consumo
e o aumento dos lucros. Não entra em suas preocupações considerar os deletérios
efeitos ambientais que produz. Por isso a Encíclica postula outra modalidade de
progresso, com redução do ritmo de produção e consumo (LS 191). Apela para uma
criatividade inteligente, responsável, audaciosa que alie a noção de progresso
com o respeito ao meio ambiente (LS 192). Pois “um desenvolvimento tecnológico e econômico que não deixa o mundo
melhor e uma qualidade de vida integralmente superior não pode ser considerado
progresso” (LS 194). Esta afirmação já é experimentada por todos nós pela
padronização comercial dos alimentos, escassez de água, poluição atmosférica,
aceleração do ritmo de vida, deterioração das relações humanas. Portanto o
discurso ecologista dentro da lógica neoliberal é puro engodo. Um modelo econômico
baseado no consumo produz sempre um desastre ecológico devido à limitação dos
recursos naturais e à enorme proliferação de resíduos, sem falar das
desigualdades sociais que gera. Preservação do ambiente e desenvolvimento do
capital são totalmente irreconciliáveis. Assistimos hoje em nosso país como os
pobres, camponeses e índios, são privados de seu hábitat natural, de seus
recursos alimentares, de suas culturas em favor de multinacionais que arrasam
regiões inteiras em nome do progresso, sem ter a mínima consideração com os
seres humanos que as habitam. Daí afirmar taxativamente o Papa Francisco: “A política não deve submeter-se à economia,
e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da
tecnocracia” (LS 189).
Entretanto este objetivo só poderá ser alcançado se o próprio
ser humano, responsável pela política e pela economia, mudar seu modo de vida. Aqui ele poderia muito
aprender das grandes tradições religiosas da humanidade que transmitem uma
sabedoria muito ampla e comprovada. A fé cristã capacita o ser humano a libertar-se
de seu egoísmo, descentrar-se de si mesmo, abrir-se aos demais, já que tem no
amor fraterno o seu próprio núcleo de vida. Pois o cristão é consciente de
participar do grande projeto de Deus, revelado em Jesus Cristo, de implantar
seu Reino na sociedade fazendo de todos uma só família. Ele procura assumir o
modo peculiar de olhar seus semelhantes e a própria natureza próprio de Jesus
Cristo. Pois sabe que todo o mundo criado é dom de Deus em vista de uma
comunhão universal (LS 220). Daí que “o
amor à sociedade e o compromisso pelo bem comum são uma forma eminente de
caridade” que abrange em si os âmbitos da política, da economia e da
cultura (LS 231). Mas deverá realmente viver este imperativo de sua fé. Para
tal deverá passar por uma conversão
ecológica que o torna guardião da obra de Deus como parte essencial de sua
identidade cristã (LS 217). Porém se faz necessário, dada a atual sociedade em
que vivemos, carente de valores substantivos, combater o atual consumismo que
se apresenta enganosamente através da mídia como fonte de felicidade (LS 204).
A palavra-chave aqui é sobriedade.
Como expressa claramente o Papa Francisco: “A
espiritualidade cristã propõe um crescimento na sobriedade e uma capacidade de
se alegrar com pouco. É um regresso à simplicidade que nos permite parar e
saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a vida oferece sem
nos apegarmos ao que temos, nem nos entristecermos por aquilo que não possuímos”
(LS 222). Então seremos capazes de viver melhor cada momento, dar apreço a
cada pessoa e a cada coisa, valorizar os encontros fraternos, gozar da paz que
nos dá o serviço desinteressado, sentir-se irmanado com a natureza próxima,
enfim curtir as coisas mais simples e saber com elas se alegrar (LS 223).
Sintetizando o que vimos: não encontramos na vida e nas
palavras de Jesus uma referência direta e explícita ao problema ecológico.
Simplesmente porque tal questão não existia naquele tempo. Mas a interpretação
da realidade feita pelo Mestre de Nazaré e que deve ser a mesma de qualquer
cristão que faça jus a este nome, nos oferece um amplo horizonte de compreensão
para a questão atual do meio ambiente. Nossa exposição procurou mostrar o que
poderíamos chamar de base teológica da Encíclica Laudato Sí. Não entramos nas
consequências de cunho ético que decorrem de tal visão cristã por serem tema de
outra exposição, embora sabemos que não é possível separar doutrina e ética no
seguimento real de Jesus Cristo, reconhecendo não só que se implicam, mas também
se iluminam mutuamente. A luta pelo Reino de Deus é a luta pela realização de
uma sociedade justa e fraterna, pelo cuidado com os mais pobres, pela
preservação do hábitat natural do ser humano, enfim pela humanização da
sociedade. Tarefa difícil na atual cultura que associa todos os que a assumem, por
inspiração do Espírito Santo, devido às resistências e incompreensões da
sociedade, ao mistério pascal de Jesus Cristo. Mesmo sem reduzir o cristianismo
a uma ética humanizadora, que o privaria do próprio fundamento de suas ações, podemos
dizer que quando trabalhamos pela humanização do homem, aí implicada a postura
correta diante da natureza, trabalhamos pela salvação da humanidade.
x-------------------------------000000000000000000000-----------------------------------------------------x- INSTITUIÇÃO E INDIVÍDUO
NA REFORMA ECLESIAL DE LUTERO E DE FRANCISCO
O tema da Reforma ganha hoje uma enorme atualidade. Não só
devido aos quinhentos anos da reforma empreendida por Martinho Lutero, mas
também pela renovação eclesial levada a cabo pelo Papa Francisco na Igreja
Católica. Não pretendemos entrar nos debates atuais de cunho histórico ou
teológico sobre este grande evento que marcou a história do ocidente e cujas
consequências sentimos ainda em nossos dias. Mas não podemos deixar de ver
certas semelhanças entre esses dois movimentos de retorno ao Evangelho em seu
sentido original. Vamos abordar apenas um tema de toda uma gama de questões em
estudo na atualidade. Trata-se de resgatar a dimensão pessoal da própria fé cristã confrontada com sua necessária,
mas talvez em nossos dias hipertrofiada, institucionalização.
Pois vivemos numa época marcada por rápidas e sucessivas transformações
socioculturais, as quais exigem das instituições mudanças imediatas,
linguagens, estruturas, e práticas novas que elas não conseguem satisfatoriamente
oferecer. E as Igrejas cristãs devido a seu múnus evangelizador sentem bastante
o impacto da nova situação que explica porque a transmissão da fé a novas
gerações tenha se tornado atualmente um sério problema. Mas devemos acrescentar
outro fator ainda de maior peso, a saber, constatamos certa hegemonia do
componente institucional em detrimento da vida de fé pessoal, ou seja, do que
poderíamos chamar da dimensão mística da fé cristã. Numa época que tanto
acentua o respeito à liberdade individual, que tanto promove a aceitação mútua
das diferenças, que se rebela contra padrões tradicionais de comportamento,
embora simultaneamente ofereça a preocupante realidade de uma manipulação ampla
dos nossos contemporâneos por parte das empresas e dos modernos meios de
comunicação, podemos comprovar sem dúvida certo afastamento das Igrejas por
parte de muitos deles por não aceitarem como são vistos e tratados pela
instituição eclesial.
A suspeita que deu origem a esta reflexão surgiu quando
confrontamos, no interior da temática que nos ocupa, a situação da Igreja no
tempo de Lutero com a nossa atual, respeitados naturalmente os diferentes
contextos históricos e eclesiais. Daí nasceu a questão: existe realmente alguma
semelhança entre o empreendimento reformador do religioso agostiniano e o
esforço de renovação do Papa Francisco na temática que abordamos? Conserva a
reação de Lutero toda a sua força e pertinência ainda em nossos dias ao apontar
para uma verdade central da fé cristã?
1. A questão de fundo:
fé pessoal e instituição eclesial
Já do ponto de vista meramente antropológico sabemos que o
ser humano não se desenvolve e se realiza como ser humano a não ser no interior
de uma comunidade previamente existente, que lhe proporciona linguagem, padrões
de comportamento, leituras da realidade. Toda a sua vida se desenrolará numa
interação contínua com seu contexto sociocultural, no interior da tradição
recebida e em contato permanente com seus contemporâneos. Podemos aqui de um
modo mais geral caracterizar este mundo no qual nascemos com o vocábulo instituição. O institucional aqui se
opõe à opção pessoal e livre, embora saibamos que o mesmo cristaliza o resultado
de opções de gerações anteriores[1].
De qualquer modo ele oferece o contexto sociocultural real que simultaneamente
condiciona e possibilita a opção livre. Somos sempre filhos do nosso tempo.
Decidimos sempre a partir de uma consciência possível e histórica. Naturalmente
podemos nos posicionar livremente diante da herança recebida, acolhendo-a ou
rejeitando-a, criticando-a e transformando-a. Mas sempre dentro do horizonte de
compreensão que nos foi transmitido.
Sabemos também que verdades, valores, crenças, práticas, ethos,
acabam por serem institucionalizados para melhor garantirem sua sobrevivência, pertinência
e atualidade para gerações futuras[2].
De fato, quando tais características constituem a identidade de um grupo social,
elas se institucionalizam em doutrinas, celebrações e normas de cunho moral e
jurídico, intimamente relacionadas, as quais transmitidas ao longo do tempo
garantem assim sua sobrevivência. No caso do cristianismo, a experiência salvífica que os primeiros discípulos
tiveram com Jesus Cristo irá se sedimentar nos textos do Novo Testamento, que
já refletem as crenças, as práticas e os preceitos vigentes nas primeiras
comunidades cristãs. Deste modo estes escritos constituem a expressão
fundamental da fé cristã, a Palavra de Deus, juntamente com os textos do Antigo
Testamento. Entretanto já no Novo Testamento aparecem expressões, normas,
práticas, que demonstram a necessidade experimentada pelos primeiros cristãos
de atualizarem o legado que receberam em face dos novos contextos
socioculturais e dos novos desafios que enfrentam para viverem sua fé. A busca
por uma maior compreensão da revelação salvífica, a necessidade de melhor
esclarecer pontos da ética cristã e a urgência de normas para reger um
contingente cada vez maior de fiéis, fizeram inevitavelmente crescer o que
chamamos aqui a dimensão institucional do cristianismo. Esta última, embora
toda ela finalizada para levar à humanidade a salvação de Jesus Cristo, na
fidelidade ao Espírito Santo e na obediência à vontade do Pai, portanto a uma
experiência específica que atinge e qualifica a existência concreta dos que a
fazem, pode sucumbir e, de fato, sucumbiu ao longo da história à tentação de se
hipertrofiar ou de se degenerar. Como reação aos novos desafios e
questionamentos provindos da sociedade a Igreja desenvolveu fortemente a
reflexão teológica, moral e canônica, dando assim lugar a uma configuração do
cristianismo, de certo modo, de cunho intelectualista, moralista e juridicista.
Se acrescentarmos ao quadro uma estrutura rigidamente hierarquizada, refletindo
o modo como a sociedade medieval se organizava, fortalecida pela ignorância
religiosa de grande parte dos cristãos, não nos deve admirar a predominância da
mediação institucional que marcou e ainda marca em nossos dias o catolicismo.
Ainda poderíamos acrescentar a realidade apresentada pela
própria Escritura. Nela o Deus transcendente e inacessível se revela através de
pessoas e instituições no interior da própria história. Já ao escolher o povo
de Israel como seu povo, Ele se manifesta como um Deus que manifesta através
deste povo um projeto para toda a humanidade, projeto este que irá receber sua
revelação definitiva na pessoa de Jesus Cristo[3].
Em sua vida, palavras e ações, culminando com sua morte de cruz e sua
ressurreição, tem o cristão não só a revelação do Deus transcendente em seus
desígnios salvíficos, mas também a presença do verdadeiro mediador para o
encontro pessoal com Deus. A encarnação do Logos divino caracteriza o
cristianismo como uma religião que não pode prescindir das mediações salvíficas,
cujas origens remontam ao próprio Deus e cujo sentido último consiste em remeter o cristão para Deus. Neste
sentido são locais de passagem, não metas de chegada. Enquanto os cristãos
adoram, cultuam e acolhem em suas vidas um Deus que é Mistério inacessível,
eles sempre o fazem através destas realidades sacramentais ou simbólicas que
constituem o cristianismo enquanto religião histórica. Podemos mesmo afirmar
que tudo o que constitui visivelmente o cristianismo (e que muitas vezes
erradamente se torna o foco principal de nossa atenção) aí está para nos pôr
diante de Deus que nos fala, interpela, questiona, desinstala, ilumina,
fortifica, acompanha, estimulando-nos a Lhe responder numa existência que tem
na pessoa de Jesus o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6). Dito bem
sinteticamente: o institucional no cristianismo está a serviço do pessoal, do
existencial, do místico, do experiencial, numa palavra, do salvífico.
Naturalmente as diversas modalidades de mediações salvíficas
que constituem a dimensão institucional do cristianismo apresentam igualmente uma
correspondente diversidade em sua ação mediadora. Todas elas se caracterizam
pelo que Tomás de Aquino atribuiu à doutrina cristã: o ato de fé não se detém
no enunciado, mas se dirige para a realidade nele expressa. Pois esta é
exatamente a finalidade das várias mediações institucionais. Mas certamente
observamos diferenças claras quando comparadas entre si. Uma celebração
sacramental como a eucaristia, participada conscientemente, não só aponta para
o mistério celebrado, mas ainda torna este mistério salvífico presente e
atuante para seus participantes, num grau superior às simples normas de cunho
litúrgico ou canônico. Sagrada Escritura, sacramentos, sacramentais,
celebrações religiosas, pregações, espiritualidades, normas canônicas, comunidades
eclesiais, testemunhos de vida cristã, todas estas modalidades devem ser consideradas
e vistas com o olhar da fé, a saber,
captadas e interpretadas corretamente em seu sentido verdadeiro enquanto
remetem a uma realidade para além de si mesmas. Caso contrário, perdem sua
força salvífica.
Devemos ainda considerar o modo como se apresentam estas mediações institucionais. Pois embora
provenham de Deus, devem ser
realidades acessíveis ao ser humano.
Portanto são elas históricas e sujeitas a mudanças em sua configuração,
refletindo inevitavelmente as diversas mentalidades e práticas sociais próprias
das sucessivas etapas da história humana. Ao absolutizar o histórico e
passageiro, determinadas configurações podem perder sua característica de
mediações por não ser mais entendidas como tais por seus contemporâneos,
sobrevivendo apenas como entidades do passado sem pertinência na atualidade.
Podem ser mesmo ritos sagrados, tradicionalmente venerados, mas estéreis e
vazios de valor salvífico[4].
Além de inadequadas, certas realidades institucionais podem não só refletir a
limitação humana, enquanto imperfeitas, mas também manifestar marcas do pecado,
a saber, da vontade de poder, da vaidade, da ganância, por terem sido
manipuladas em proveito dos que delas dispuseram. E como estruturas e
mentalidades mutuamente se influenciam, se condicionam, se justificam e se
reforçam, sempre podemos constatar argumentações e arrazoados para fundamentar
o status quo institucional. Daí surgir consequentemente certo autoritarismo,
certa tendência centralizadora, certa dureza e insensibilidade no exercício de
sua função por parte de algumas autoridades eclesiásticas.
Quando a comunidade dos fiéis de uma geração apresenta características
culturais próprias, práticas sociais, juízos de valor e compreensões da
realidade onde vive, e não mais se vê ajudada e confirmada em sua fé pela
linguagem doutrinária, pelas normas éticas e jurídicas e pela pastoral da
Igreja, então acontece uma separação entre comunidade humana de fé e
instituição eclesial[5].
Embora seus membros continuem mantendo sua fé em Deus e mesmo reconhecendo a
importância única de Jesus Cristo em suas vidas muitos se afastam da Igreja ou
buscam outras comunidades de fé cristã. Intensificar o discurso doutrinal,
ameaçar com penas, predizer castigos futuros, tudo isso resulta ineficaz na
atual sociedade pluralista, como podemos observar. A crise já está instalada na
própria instituição que só poderá ser solucionada por autêntica reforma eclesial que atinja não só suas
estruturas inadequadas, mas também as concepções teológicas que as justificam,
exigindo de todos os seus protagonistas uma autêntica conversão ao Evangelho.
A conversão como “metanoia” diz literalmente uma mudança de
mentalidade, que pode constituir uma tarefa bastante complexa[6].
Pois não se trata somente de acolher novos conteúdos e práticas, mas, sobretudo,
de assumir outra chave de leitura,
outro horizonte de compreensão que possibilite entender o sentido verdadeiro
das transformações em curso. Ignorar que todo conhecimento implica uma
interpretação que, por sua vez, sempre se realiza no interior de um determinado
horizonte de compreensão, sempre “historicamente situado”, torna muito difícil,
senão impossível, aceitar que a verdade, sem deixar de ser tal, possa melhor se
desvelar ao longo do tempo. Esta
afirmação vale também para a fé cristã. Pois a revelação de Deus supõe a fé que
a acolhe, sempre historicamente inserida. Portanto seja a compreensão da ação
salvífica de Deus, seja sua expressão, estão condicionadas por um contexto
sociocultural, sendo assim limitadas, podendo então experimentar um desenvolvimento
como afirma o Concílio Vaticano II (DV
8) e condicionadas também pelas falhas das autoridades, como já vimos[7].
E sabemos bem como as mentalidades condicionam e influenciam as estruturas
institucionais, fato que hoje reconhecemos sem dificuldade, seja com relação ao
papado[8],
seja com relação a uma sinodalidade mais ampla em toda a Igreja[9],
quando todos deverão se sentir
comprometidos na missão comum e igualmente participantes ativos nas avaliações
e nas decisões conforme sua competência respectiva.
Tenhamos presente o que vimos até aqui: a verdade da fé e, no
caso da Igreja, aquilo que Congar denominava os “princípios constitutivos” da
mesma[10],
só existem encarnados, inculturados, entendidos e expressos pelos seres humanos
no interior de seus respectivos contextos históricos, os quais enquanto históricos
são limitados. Consequentemente suas expressões estão sujeitas a ulteriores
desenvolvimentos, aprofundamentos e correções. Já Santo Tomás de Aquino
observava que a fé no dogma o atingia enquanto se dirigia para a realidade nele
enunciada[11],
que só conheceremos plenamente na parusia. Esta constatação se vê agravada ainda
mais pela realidade do pecado que por vezes o deforma e desfigura. Já Newman
observara que a oposição dos anglicanos com relação ao catolicismo se baseava
não tanto na doutrina, quanto em sua mentalidade e em suas formas concretas e
históricas, chamadas por eles de “romanismo”, embora confrontadas com um
anglicanismo puro, que não existia de fato[12]. Entretanto se o pecado atinge a instituição
eclesial como amplamente aqui a entendemos é porque ele já atingiu
anteriormente o próprio ser humano, enquanto responsável pelas expressões e
estruturas históricas do dado revelado. Daí a enorme importância da conversão
pessoal dos membros da comunidade eclesial para os autênticos valores do
Evangelho[13].
De tudo o que vimos a Igreja deve estar sempre aberta para se
reformar num processo contínuo ao longo da sua história. Com outras palavras:
ela deve mudar para permanecer fiel à sua identidade. O Evangelho que ela prega
é também fator decisivo, iluminador e crítico, que fundamenta o imperativo de
uma reforma contínua. Ecclesia semper
reformanda.
2. A reforma de
Martinho Lutero
A inadequação entre a
instituição eclesial e a vivência da fé por parte dos membros da Igreja era patente
na época de Lutero, constituindo mesmo a razão principal da Reforma[14].
A Europa vivia um tempo de calamidades, vistas como castigos de Deus devidos a
uma generalizada corrupção dos costumes. Sentia-se na população o medo da morte
e do inferno, que levava as pessoas, dominadas pela ansiedade e pelo medo, a
buscarem intensamente a salvação de uma condenação eterna. A instituição não
inspirava confiança e menos ainda garantia de salvação. Papas e bispos se
encontravam envolvidos com o poder temporal, e os padres afastavam-se da
pastoral voltados para interesses materiais em vista de sobreviverem, muitos do
quais escandalizando os fiéis por sua vida dissoluta. A Igreja apenas oferecia
práticas como devoções a Nossa Senhora e aos santos, peregrinações a santuários,
indulgências a serem obtidas para o perdão dos pecados, consideradas então um
meio milagroso para se livrar das penas da outra vida. A preocupação obsessiva pela
salvação individual deformava o sentido autêntico da Sagrada Escritura, das
pregações e mesmo dos sacramentos, já que se encontrava unida a uma
generalizada ignorância religiosa.
A reação dos leigos
a esta situação se concretizava na forma de uma espiritualidade individual em
busca de um contato direto com Deus, de uma experiência pessoal com Jesus
Cristo, cujo exemplo mais conhecido é o livrinho da Imitação de Cristo. Foi o tempo da mística flamenga e alemã
(Ruysbroeck, Mestre Eckart, Taulero), vista com desconfiança pelas autoridades
eclesiásticas, mas valorizadas por muitos cristãos devido à insuficiência e à incerteza
dos canais hierárquicos e litúrgicos. Também nesta época podemos constatar certa
ascendência do laicato nas atividades da própria Igreja, seja pelas iniciativas
de reis e príncipes em prol da fé cristã, seja pelo contato com a Bíblia, numa
época revolucionada pela aparição do livro impresso. E ainda podemos
acrescentar a influência dos assim chamados “humanistas” que, na linha de
Erasmo de Roterdã, buscavam uma religião mais simples, evangélica, que
desvalorizava a hierarquia, o culto dos santos e as cerimônias.
É neste contexto que se encontra Lutero. Também ele sentia a distancia entre o institucional e a
vivência da fé. Também ele se preocupava com sua salvação eterna, mesmo sendo
um religioso exemplar. Também ele tinha conhecimento da mística alemã, seja
pelo conhecimento do dominicano João Taulero, seja pela edição de um pequeno
livro que ficou conhecido como “teologia alemã”. Mas sendo monge agostiniano
foi muito influenciado pela teologia de Santo Agostinho e, sendo professor de
Sagrada Escritura, dedicou-se ao estudo do hebraico e do grego, de tal modo que
emergia em seu tempo como um dos melhores conhecedores da Bíblia. Sua
experiência pessoal com as tentações levou-o a afastar-se das teorias
ockamistas, sobretudo de Gabriel Biel, que acreditava na capacidade do ser
humano de, por si só, praticar a virtude e obter sua salvação. Uma intuição
fundamental de seu pensamento foi se desenvolvendo, que se vê confirmada pela
leitura da Carta aos Romanos: é a justiça
salvífica, não condenatória, de Deus que nos salva gratuitamente, não
imputando nossas faltas devido a sua misericórdia por nós[15].
Fundamental é crer nesta palavra da Escritura, é confiar em Deus. Através da fé
enquanto abandono e confiança na misericórdia divina o ser humano estabelece um
relacionamento pessoal com Deus.
Deste modo Lutero questionava seriamente as práticas religiosas do tempo em seu
valor salvífico, de modo especial a prática mais escandalosa da venda das
indulgências.
Portanto inicialmente
ele não pretendia uma reforma da Igreja, mas simplesmente apresentar suas
convicções teológicas para debate, como era costume em seu tempo. Sabemos que
as 95 teses (1517), que já demonstram
profunda argúcia teológica na crítica ao afã generalizado de ganhar
indulgências, foram tornadas públicas sem que Lutero tivesse disso conhecimento.
Entretanto, mesmo partindo de argumentos teológicos, como convinha a um
professor, suas conclusões questionavam profundamente mentalidades e práticas
contemporâneas, como eram então concebidas as indulgências, ensinadas as
teologias escolásticas, e urgidas as normas jurídicas. A rápida e vitoriosa
divulgação de suas teses fez dele um reformador, mesmo que não fosse essa sua
intenção inicial[16].
Em sua obra programática Da
liberdade do cristão[17],
escrita no início de seu posicionamento crítico com relação à instituição
eclesial de seu tempo (1520), Lutero confronta repetidas vezes a religião
reduzida ao cumprimento de obras e práticas externas com uma atitude pessoal e
consciente própria do ato de fé, relegando-as ao “corpo” enquanto que a fé é
atribuída a “alma” (5). Para Lutero somente a fé faz jus ao primeiro mandamento
e, portanto, só ela pode nos salvar. As obras devem decorrer dela como os
frutos bons brotam de uma árvore boa. “As obras boas e justas jamais tornam o
homem bom e justo, mas o homem bom e justo realiza obras boas e justas” (23).
Ele tem fé, ele confia na “Palavra misericordiosa” de Deus, que nos salva “por
pura clemência” (24). E esta Palavra “não é outra coisa que a pregação feita
por Jesus Cristo tal como está contida no Evangelho” (6). E é esta fé em Cristo
que capacita o cumprimento dos mandamentos e a libertação da cobiça e do pecado
(9), que nos traz realmente o perdão dos pecados e que torna a confissão
sacramental frutuosa (25).
A fé deve sempre anteceder às obras, pois estas últimas, sem
a fé, podem representar apenas interesses pessoais egocêntricos. “Receio que
poucos mosteiros, conventos, altares, missas e testamentos sejam realmente
cristãos, bem como jejuns e orações feitos especialmente para alguns santos.
Porque temo que, com isso, cada qual procure apenas o que lhe diz respeito,
pretendendo assim expiar seus pecados e atingir a bem-aventurança” (29). A
pregação da fé em Cristo não pode ser omitida pelos que pregam o direito
canônico ou outras doutrinas e leis humanas, e nem deve consistir apenas num
conhecimento da história de Cristo ou numa compaixão sentimental, mas numa
pregação que faça crescer a própria fé ao explicitar tudo o que dele recebemos,
ocasionando nos ouvintes alegria, consolação e amor (18).
Nesta obra já surgem alguns temas que serão amplamente tratados
por Lutero ao longo de sua vida. Pois esta fé pessoal em Jesus Cristo, que nos
abre para a misericórdia de Deus, se encontra fundamentada na Sagrada Escritura, implica o acesso de todos a Deus, acesso esse não
mais visto como privilégio dos sacerdotes (16), que dará origem ao chamado sacerdócio comum dos fiéis, à afirmação
repetida da liberdade cristã diante
dos mandamentos e das leis (10), embora serva de todos já que o cristão,
justificado pela fé, “deve sentir-se livre e pensar apenas em servir e ser útil
aos demais, visando unicamente às necessidades dos outros” (26).
Outra obra de Lutero desta época Do cativeiro babilônico da Igreja[18]
apresenta sua preocupação com o peso desmesurado da realidade
institucional na vida dos fiéis com
“tantas ordens, ritos, orientações, profissões, afãs e obras” (p. 72), votos
que acarretam aumento de leis e obras (p. 73), sendo que as tradições humanas
com relação ao matrimônio impedem o “Evangelho da liberdade” (p. 97). Não se
deve deter no rito que não possui eficácia independente da fé (p. 46; 66): “são
sinais ou sacramentos da justificação, visto que são sacramentos da fé
justificante e não da obra. Por isso toda a sua eficácia é a fé e não a
operação” (p. 65). Também o fato de ser ordenado ou religioso não acarreta uma
superioridade cristã com relação aos mais simples (p. 76), já que todos são
sacerdotes (p. 106) e gozam do mesmo poder na Palavra e em qualquer sacramento.
Mas observa: “entretanto, não é lícito que qualquer um faça uso desse poder, a
não ser com o consentimento da comunidade ou por chamado de um superior” (p. 109).
Embora não expressamente mencionada trata-se sempre da liberdade do cristão diante da instituição entendida num sentido
amplo. Daí a afirmação do reformador: “Somente por causa dessa liberdade e
consciência, clamo eu e faço-o confiadamente” (p. 71).
Se nos limitarmos ao teólogo Lutero no período anterior à
ruptura com as autoridades da Igreja Católica, conhecido como período “pré-confessional”,
já temos aqui o núcleo de seu pensamento, embora também explicitado em outros
escritos deste tempo[19].
Naturalmente suas ideias irão inevitavelmente atingir tanto as autoridades
eclesiásticas de então, quanto a dimensão institucional da Igreja. Sabemos
também que boa parte destas consequências se deve às condições históricas
daquela época, devendo ser devidamente contextualizadas e, portanto,
relativizadas. Sabemos ainda que o clima polêmico ocasionou afirmações radicais
que hoje nos parecem exageradas. Pois sua intenção de fundo era a de reformar a
Igreja e nela permanecer, não realizando este objetivo pelo autoritarismo das
autoridades eclesiásticas enviadas de Roma que exigiam a retratação sem mais e também
pela novidade naquele tempo de sua linguagem teológica[20].
Dentro da ampla temática em torno da Reforma do século XVI
escolhemos a relação indivíduo e
instituição como o ponto central desta reflexão. Em face de uma instituição
eclesial que mais escandalizava do que edificava os fiéis, Lutero através de
sua doutrina da justificação pela fé enfatiza a opção pessoal na aceitação livre e consciente da prévia oferta de salvação
que Deus nos faz em seu Filho. Mesmo que hoje possamos apontar certa
“preferência” de Lutero por S. Paulo, que vê a teologia paulina como critério
central do Evangelho, entretanto tal preferência se justifica pela
comercialização da piedade naquele tempo, devendo ainda ser entendida não como
um princípio apenas formal, mas como um princípio cujo conteúdo é o próprio
Jesus Cristo[21]. Também
influiu o fato de Lutero ser profundamente otimista com relação à clareza da
Sagrada Escritura (já que não dispunha dos recursos da exegese moderna),
fundamentada também em seus conhecimentos das línguas bíblicas, a ponto de se
irritar com os que discordavam de sua própria interpretação.
Certamente a afirmação da sola
fide, da sola Scriptura, do solo Christo, abre para o cristão um
contato direto com Deus, um espaço mais amplo para sua vida espiritual, que o
liberta das normas e práticas da hierarquia autoritária do tempo. Uma via
salvífica que supõe uma opção pessoal exigente, mas que traz consolação e paz,
numa época de muita inquietação e medo com relação à própria salvação eterna. A
imediatidade do cristão com Deus,
baseada na fé enquanto confiança plena no dado da revelação, liberta o cristão
de qualquer autoridade eclesiástica ou civil. Aqui temos “o próprio núcleo da
fé na justificação, e a doutrina da justificação é apenas a formulação e a
fundamentação desta liberdade”[22].
Ela pode ser formulada diversamente como a “certeza da salvação”, entendida não
subjetivamente, mas já inerente à própria fé no gesto gratuito de Deus. Lutero
não cai num individualismo religioso, pois sabia que a Palavra de Deus que
anunciava a justificação gratuita por parte de Deus era proclamada e vivida na
comunidade eclesial, portanto, uma imediatidade mediada pela Igreja. Pois a fé
embora seja uma opção pessoal tem por si mesma uma dimensão social, já que
funda e sustenta a comunidade, criando um contexto que a fortalece e ajuda.
Assim a Igreja, neste sentido, é anterior à fé, pois somos levados à fé por
aqueles que já creem num processo de comunicação e de transmissão da fé. Consequentemente
a Igreja não é “mediação da graça”, interrompendo o relacionamento direto da
pessoa com Deus, pois apenas lhe oferece a Palavra salvífica de Deus e ajuda o
fiel a vivê-la[23].
Lutero caracterizava a Igreja principalmente como “comunidade dos fiéis”,
reunida pela Palavra de Deus que a faz nascer, alimenta, conserva e fortifica.
O Povo de Deus não pode existir sem a Palavra de Deus. Mas reconhece a sua
dimensão institucional constituída pela reta Escritura, batismo, sacramento do
altar, confissão, pregação, catecismo. Não existe um antitradicionalismo em
Lutero, que combaterá neste particular os carismáticos entusiasmados.
A relação “fé e sacramento” também se apresentava deturpada
na mentalidade dos cristãos da época de Lutero, embora corretamente entendida
na Patrística e na Alta Idade Média. Na Igreja Latina o sacramento é visto como
um sinal visível de uma realidade invisível. Mas em Agostinho o sacramento se
celebra na comunidade na qual a proclamação da Palavra, a celebração visível e
a fé pessoal se encontram estreitamente unidas. Com a introdução do latim na
liturgia a celebração se tornou mais uma ação de clérigos, deixando de fora a
comunidade e se transformando num “meio salvífico” que “atua” eficazmente devido
a um “ex opere operato” mal entendido, exigindo do fiel apenas que não ponha
obstáculo a sua realização. Também aqui Lutero recupera a decisiva importância
da fé na recepção do sacramento, pois em sua ausência o sacramento perde sua
eficácia. Como afirma incisivamente: “Não o sacramento, mas a fé no sacramento
é que justifica”[24]. Pois
o sacramento não existe para poupar a fé, ou o compromisso pessoal.
Entretanto diante do modo como eram oferecidas as
indulgências neste tempo, semelhante crítica irá atingir também a autoridade da
Igreja, já que o pregador das mesmas (Tetzel) proclamava que o Papa podia
conceder o perdão dos pecados (até para os já falecidos), independentemente da
contrição, da penitência e da recepção do sacramento da confissão, desde que
contribuíssem para a edificação da Basílica de S. Pedro[25].
Como Lutero não se retratasse, já que profundamente convicto de sua afirmação,
a disputa teológica acabou se transformando num rompimento com a Igreja que,
desde o início, o próprio Lutero não queria.
No interior da temática que escolhemos neste estudo não
podemos deixar de mencionar a questão do sacerdócio comum dos fiéis. Já na
tradição anterior a Lutero todo batizado devia participar da missão de Jesus
Cristo. Também para Lutero, baseado em 1 Pd 2,9, a fé em Cristo levava à
participação não só em sua vida, mas também em seu sacerdócio. Portanto todo
cristão é digno de se dirigir a Deus na oração, rezar pelos outros e lhes
anunciar a doutrina revelada. Até a oferta do sacrifício está incluída no
sacerdócio de todo cristão no sentido de Rm 12,1 e de 1 Pd 2,5, enquanto doação
da própria vida no serviço a Deus e aos semelhantes. Lutero não nega o ministério
hierárquico, pois o considera necessário para que a proclamação da Palavra,
enquanto tarefa de todos no interior da comunidade, não rompa com a unidade da
mesma comunidade eclesial[26].
Esta dimensão comunitária da proclamação da fé e da celebração da ceia do
Senhor deve ser preservada. Mas aqueles que são por ela responsáveis dependem,
por um lado, da consciência de fé da comunidade e, por outro, representam a
unidade do encargo provindo de Cristo para seus discípulos. Portanto todos
participam da missão de Cristo, mas o seu uso
na comunidade não está à disposição de cada membro singularmente, mas pressupõe
o consentimento da comunidade ou o chamado de um superior[27].
Entretanto sua compreensão pessoal do que lhe foi transmitido, juntamente com a linguagem que
utiliza ao expressá-la, abrem inevitavelmente um espaço de liberdade, cuja raiz última é a própria experiência imediata com a
verdade salvífica possibilitada pelo Espírito Santo. Este fato pode explicar
também seu posicionamento crítico em face do que lhe foi transmitido, não com
relação ao seu conteúdo, mas à forma
como lhe foi legado. A mesma liberdade goza o cristão com relação à hierarquia
que não realiza sua finalidade de leva-lo à imediatidade com Deus, e se erige
em instância de poder ou em mediação exclusiva desta missão. Consequentemente
Lutero concedia ao cristão o direito e o dever de julgar a doutrina do ministro
ordenado.
O sacerdócio comum dos fiéis é dirigido a todo o Povo de Deus
no texto de Pedro 2,9. Lutero, contudo, o relacionava com a doutrina paulina da
liberdade cristã[28],
que capacitava o cristão a emitir um juízo próprio (1Ts 5,21; Fl 1,9), já que
com livre acesso ao Pai pela participação no relacionamento filial de Cristo
com Deus (Rm 8,15; Gl 4,6). Para Lutero liberdade e imediatidade para com Deus
vão juntas[29].
Note-se ainda que a liberdade cristã é fruto da ação do Espírito nos fiéis
(2Cor 3,17). A liberdade cristã enquanto participação no relacionamento filial
de Cristo com o Pai significa para o ser humano realizar sua própria
identidade, libertando-o de seu egoísmo e capacitando-o a zelar pela
preservação da comunidade eclesial e jamais contra ela.
3. A reforma de
Francisco
A decadente situação da Igreja na época de Lutero provocou
finalmente uma reação efetiva das autoridades eclesiásticas com a convocação do
Concílio de Trento, que procurou fazer frente não só aos ataques doutrinais,
mas também disciplinar a vida dos clérigos na Igreja. Seus decretos e suas
normas buscaram estabelecer as verdades da fé católica, numa Europa agitada e
dividida entre reinos católicos e protestantes. Devido ao clima polêmico de
então e à impossibilidade de acesso aos debates na aula conciliar, as
conclusões deste Concílio, literalmente entendidas, irão marcar a fisionomia da
Igreja Católica nos séculos seguintes. O advento do fenômeno cultural conhecido
como “modernidade” que porá fim à hegemonia da Igreja na sociedade ocidental e
que será considerada então perniciosa para a fé cristã, ocasionará certo
retraimento da vida social por parte da Igreja levando-a a constituir seus
“espaços católicos” numa sociedade pluralista e laica. O Concílio Vaticano II
procurou aceitar o desafio da modernidade e dialogar com a sociedade para que a
Igreja pudesse melhor desempenhar sua missão evangelizadora no mundo. Algumas
reivindicações da Reforma foram assumidas pelos padres conciliares, reivindicações
essas vistas com objetividade e serenidade.
Não nos cabe aqui fazer um inventário destes pontos ou expor
a riqueza doutrinal deste grande Concílio Ecumênico. Limitando-nos à nossa
temática assinalemos como conquistas conciliares a doutrina da colegialidade
episcopal, a eclesiologia do Povo de Deus, o reconhecimento e a participação do
laicato na vida da Igreja, o decreto sobre a liberdade religiosa, o diálogo
ecumênico e interreligioso, que juntamente com outras conclusões conciliares
irão provocar mudanças e agitações no período posterior ao Concílio, dando
ensejo a uma nova centralização por parte da Sede Apostólica e coibindo a
efetivação de algumas conquistas deste Concílio, como a colegialidade
episcopal, a importância das Igrejas Locais, a inculturação da fé, o diálogo
ecumênico, a liberdade dos teólogos, para citar algumas. Este processo de
centralização institucional[30]
e de rigidez no âmbito da moral[31]
visava a combater o relativismo reinante na sociedade, mas não trouxe bons
resultados. Daí o clamor por parte de bispos e teólogos por uma maior
fidelidade às determinações conciliares e por uma reforma da Cúria Romana vista
como uma instância com desmesurado poder na Igreja[32],
fato esse agravado pelos escândalos de cunho financeiro e sexual dentro do
próprio Vaticano e fartamente propagados pela mídia. Em tudo isso se mantinha
uma estrutura vertical, autoritária, juntamente com uma mentalidade fortemente
doutrinária e jurídica numa sociedade que prezava fortemente a participação e o
respeito ao indivíduo, fato este que afastava as pessoas da Igreja. Urgia, sem
dúvida, uma reforma!
A Exortação Apostólica Evangelii
Gaudium (EG) do Papa Francisco é
apresentada como um pronunciamento programático
(25) deste pontificado, pois pretende “indicar caminhos para a Igreja nos
próximos anos” (1), oferecendo-nos assim uma base segura para conhecer o
pensamento deste papa. Porém sua temática é bastante ampla e complexa.
Abordaremos assim somente o que se encontra na perspectiva de nosso estudo.
A intenção do papa em promover uma reforma na Igreja é bastante clara (26), expressa no convite a um
processo de discernimento, purificação e reforma (30). Ele aponta falhas na
mentalidade de muitos agentes pastorais na Igreja: individualistas, inseguros,
pouco fervorosos (78), mais administradores que pastores (63), desanimados (82),
satisfeitos com “o pragmatismo cinzento da vida cotidiana da Igreja” (83). Igualmente
reprova o “mundanismo espiritual” (93) de “uma fé fechada no subjetivismo”,
“enclausurada na imanência da própria razão ou dos seus sentimentos”, ou ainda
numa “suposta segurança doutrinal ou disciplinar que dá lugar a um elitismo
narcisista e autoritário” (94). Este mundanismo se manifesta por “um cuidado
exibicionista da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja”, e “se esconde
por detrás do fascínio de poder mostrar conquistas sociais e políticas”, ou “se
desdobra num funcionalismo empresarial” (95). Ou ainda vive a atacar os erros
alheios e se mostra obsessivo com a aparência (97). Numa comunidade eclesial
despreocupada com os pobres este mundanismo espiritual se encontra “dissimulado
em práticas religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios” (207).
O papa denuncia também “um excessivo clericalismo” que
marginaliza os leigos (102), a participação das mulheres na Igreja (103),
esquecendo que “as funções não justificam a superioridade de uns sobre outros”
(104). Já por ocasião de sua vinda ao Brasil para a Jornada Mundial da
Juventude o papa apresenta aos bispos latino-americanos uma série de perguntas
que implicam, quando corretamente respondidas, sérias mudanças de atitudes
pastorais e transformações profundas na vida da Igreja[33].
No fundo deseja uma Igreja “em saída” (20), “de portas abertas” (47),
exercitada na “arte de escutar” (171), evangelizada e evangelizadora pela
Palavra de Deus (174), solidária com os pobres (187), capaz de diálogo
(238-257), aberta à ação do Espírito Santo (259-261; 280).
A reforma querida pelo papa atinge também as estruturas eclesiais. Já vimos como
mentalidades e estruturas se condicionam mutuamente, de tal modo que
dificilmente sobrevivem separadas. O papa advoga “uma salutar descentralização”
(16), uma “conversão do papado” que amplie a participação das Conferências
Episcopais “incluindo alguma autêntica autoridade doutrinal” (32) e pede que
sejam revistas as “estruturas eclesiais que podem chegar a condicionar um
dinamismo evangelizador” (26), mais preocupadas em se autopreservar (27), dando
assim a impressão de entidades burocráticas (63).
Com relação ao tema escolhido para este estudo, a saber, à
relação da pessoa com a instituição, vejamos primeiramente a ênfase posta na pessoa humana claramente comprovada pelas inúmeras passagens desta
Exortação que insistem no encontro pessoal do fiel com Jesus Cristo (3), de
onde brota sua missão (120) de comunicá-lo aos demais (121). Portanto, tudo
parte de uma experiência primeira “de
sermos salvos por Ele” (264), pois o verdadeiro missionário “sabe que Jesus
caminha com ele, fala com ele, respira com ele, trabalha com ele” (266). Entretanto,
esta experiência não deve consistir numa fé reduzida “ao âmbito privado e
íntimo” (64), “num individualismo doentio” (89), e sim numa “relação pessoal e
comprometida com Deus, que ao mesmo tempo nos comprometa com os outros” (91). Fundamento
desta fé vivida é “o coração da mensagem de Jesus Cristo” (34), a saber, “a
beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e
ressuscitado” (36), atestado pela ação do Espírito Santo (37) e que deveria ser
mais enfatizado na pastoral da Igreja (38).
Ao assumir a eclesiologia conciliar do “Povo de Deus” o papa
insiste na participação ativa de
todos fiéis na Igreja, em razão do batismo (102), sobretudo na contribuição
importante que a mulheres poderão trazer a toda a comunidade eclesial (103).
Para tal se “deverá estimular e procurar o amadurecimento dos organismos de
participação propostos pelo Código de Direito Canônico” (47). Deste modo o papa
acolhe generosamente a herança do Concílio Vaticano II sobre a atividade
apostólica do laicato (Apostolicam Actuositatem).
Enquanto membro da Igreja, cuja finalidade última é a missão, todo cristão é
consequentemente também um missionário, e sua participação não deveria se
limitar apenas ao ministério de ensinar e de santificar, mas também ao múnus do
governo, limitado atualmente ao âmbito da consulta.
Na mesma linha de respeito à pessoa concreta, marcada por seus condicionamentos internos e
externos, Francisco considera a vida cristã como uma caminhada (161) que admite
uma evolução (44), que “não exige uma resposta completa a Deus, se ainda não
percorremos o caminho que a torna possível”, desde “que estejamos dispostos a
continuar a crescer” (153). Portanto, na catequese, é importante “a necessária
progressividade da experiência formativa” (166). Neste particular o papa segue
seu princípio de “dar prioridade ao tempo”, sendo mais importante “iniciar processos
do que possuir espaços” (223), “adotar os processos possíveis e a estrada
longa” (225).
Esta preocupação volta no texto da Amoris Laetitia quando, se apoiando na Familiaris Consortio de João Paulo II, alerta para a “lei da
gradualidade”, “uma gradualidade no exercício prudencial dos atos livres em
sujeitos que não estão em condições de compreender, apreciar ou praticar
plenamente as exigências objetivas da lei” (AL
295). Consequentemente devem ser consideradas concretamente as assim chamadas
“situações irregulares” (AL 296; 301),
que podem ser bem diferentes (AL 298),
de tal modo que “um juízo negativo sobre uma situação objetiva não implica um
juízo sobre a imputabilidade ou a culpabilidade da pessoa envolvida” (AL 302; 305), embora “uma situação
irregular não possa ser elevada à categoria de norma” (AL 304) e nem implique “jamais esconder a luz do ideal mais pleno”
(AL 307).
Esta concepção do papa Francisco, que respeita “uma pessoa
única, com sua história e seu itinerário com Deus e para Deus”[34],
pode e deve ser mais bem entendida quando posta num horizonte mais amplo no
qual estão presentes verdades centrais da fé cristã. A começar pela misericórdia divina, palavra-chave da
Sagrada Escritura para indicar o agir salvífico de Deus para com a humanidade,
como atesta a Bula de Proclamação do
Jubileu Extraordinário da Misericórdia (Misericordiae
Vultus) (MV 9). Este modo de agir, que implica a revelação do próprio Deus,
encontramos na vida e nas palavras de Jesus Cristo, “rosto da misericórdia do
Pai” (MV 1), “sinal eficaz do agir do Pai” (MV 3), pois era a misericórdia que
o movia em sua missão (MV 8), expressa em suas parábolas (MV 9). Também a
Igreja deve assumir esta mesma atitude já que “sua credibilidade passa pela
estrada do amor misericordioso e compassivo” (MV 10) e nela “qualquer pessoa
deve poder encontrar um oásis de misericórdia” (MV 12)[35].
A ênfase na misericórdia como princípio hermenêutico fundamental pode ser visto como uma mudança
de paradigma: de um método mais dedutivo para outro mais indutivo, que valoriza
a situação real da pessoa para em seguida dar a palavra aos critérios
teológicos. Não se mudam os conteúdos da doutrina ou da moral, mas sim a
perspectiva na qual são considerados e entendidos[36].
Portanto, o discurso da misericórdia não significa abrandamento ou relativismo
doutrinal ou ético, ou mesmo negação da justiça divina, pois como diz Santo
Tomás de Aquino a misericórdia não abole a justiça, mas lhe dá cumprimento e
sobrepõe-se a ela[37].
De fato a história da salvação nos apresenta um Deus não só paciente, mas
misericordioso, que conhece melhor o ser humano do que ele próprio, que o leva
a sério em sua situação concreta, que penetra seus condicionamentos conscientes
e inconscientes, que sabe entendê-lo e perdoá-lo sem deixar de estimular seu
crescimento moral e chamá-lo para sua responsabilidade diante da vida.
A doutrina e a norma
moral da Igreja gozam da característica da universalidade
conferindo identidade à comunidade dos fiéis. Naturalmente enquanto apresentam
uma intencionalidade salvífica que
lhes é essencial devem ter em consideração a pessoa concreta à qual se dirigem[38].
Não entraremos aqui no fato de que tanto as expressões doutrinais ou morais não
são blocos monolíticos, podendo crescer a tradição da fé como nos indica o
Vaticano II (DV 8) ou como nos comprova a própria história da consciência moral
da Igreja[39].
Portanto, considerar concretamente a pessoa humana significa não a conceber
teoricamente, mas sim realmente, a saber, no emaranhado dos condicionamentos,
experiências, limitações, e falhas que constitui sua história e sua
personalidade. Neste ponto o papa demonstra ter assimilado perfeitamente a
visão de Santo Inácio de Loyola para quem “os grandes princípios devem ser
encarnados nas circunstâncias de lugar, de tempo e de pessoas”, exigindo sempre
a arte do discernimento[40].
A proclamação da fé cristã deve ser livremente “recebida” por
esta pessoa humana, fato este que implica que seja entendida no horizonte de
compreensão do receptor que jamais poderá acolhê-la em toda a sua amplitude e
riqueza e que inevitavelmente a captará com as categorias mentais de que
dispõe. Uma coisa é a proclamação por parte da autoridade, outra coisa o que
realmente “chega” nos ouvintes. Igualmente o ensino moral da Igreja não
significa simplesmente uma aplicação automática e fria de normas universais. Pois
deve ter em consideração a pessoa em sua realidade concreta, pois sua intencionalidade última é de cunho
salvífico, a saber, ajudar esta pessoa a acolher e viver a salvação oferecida
em Jesus Cristo. Embora já presente na tradição oriental com a noção de
“economia” e na Igreja ocidental com o conceito de “epiqueia”[41],
esta verdade também se encontra presente na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (44). O mesmo
poderíamos afirmar do que caracterizamos como a dimensão institucional da fé
cristã, que surge da própria vivência de fé dos cristãos quando expressam esta
fé, comunicam-na a outros, celebram-na e organizam a comunidade dos que a
acolhem. Pois toda a estrutura institucional deve estar a serviço do indivíduo
em vista de sua salvação[42].
Sobretudo em nossos dias é fundamental que a instituição, em
suas doutrinas, normas e estruturas, desempenhe realmente um papel mistagógico de conduzir os fiéis a um
encontro pessoal com Jesus Cristo, a uma fé consciente e livre, a uma
experiência realmente salvífica, o que não poderá se realizar sem ter em
consideração a pessoa concreta e os passos possíveis que pode dar no seguimento
de Cristo. Trata-se, portanto, não de enunciar princípios ou normas gerais, mas
sim de conduzir a pessoa a acolher e assumir tais princípios e normas em sua
realidade existencial[43].
Tarefa urgente em nossos dias já que a sociedade secularizada constitui um
autêntico desafio à fé dos cristãos. Aqueles que se satisfazem com uma religião
de práticas tradicionais ou de mera obediência às autoridades eclesiásticas constituem
presa fácil desta cultura atual e se afastam da Igreja. Falta-lhes a
experiência salvífica com Deus que daria consistência a sua fé, situação esta
agravada pelas conhecidas deficiências da própria hierarquia.
Consequentemente é muito importante que tanto o conteúdo
doutrinal quanto a norma moral sejam livremente “recebidas” pelo cristão,
resultem de uma opção pessoal, conduzam o indivíduo a certa imediatidade diante de Deus, respeitem
sua liberdade e sua consciência, tenham paciência com o processo de
amadurecimento na vida cristã até que ele atinja sua maioridade na fé[44].
A liberdade de consciência deve ser sempre resguardada[45],
mas a Igreja deve oferecer as adequadas orientações para que ela possa
corretamente avaliar e decidir por si mesma quando se fizer mister. “A
identidade cristã se funda sobre a decisão livre da fé”[46].
Verdade a ser enfatizada na atual cultura que tanto preza a subjetividade como
seu traço mais característico, embora dominada pela sua versão degradada do
individualismo moderno.
O respeito à pessoa concreta que recebe a mensagem evangélica
vai inevitavelmente ocasionar uma pluralidade de expressões da mesma verdade
cristã. Pois ao ser recebida e entendida como tal, e posteriormente expressa,
ela o será necessariamente no horizonte
de compreensão do receptor. Poderemos ter então expressões múltiplas da mesma
verdade, indispensáveis para que a mensagem salvífica seja acolhida e,
sobretudo, vivida. Hoje o processo de inculturação da fé já não encontra as
resistências que experimentou no passado. Aceita-se que cada um pode ser cristão
no interior de sua própria cultura e com a linguagem que dispõe, embora se
trate de um processo lento e muito delicado. Naturalmente este fato coloca um
sério problema para o magistério eclesiástico, já que implicitamente afirma não
existir uma linguagem universal, pois sempre se parte de um contexto
sociocultural concreto e particular. Como vemos o papa Francisco está em
perfeita sintonia com o Vaticano II e com as Assembleias do CELAM (EG 115-118).
Ao afirmar que “uma única cultura não esgota o mistério da
redenção de Cristo” (EG 118) o papa alude a uma verdade que merecia receber
maior atenção por parte da Igreja. Pois a fé cristã tem a ver com o mistério de Deus que jamais poderá ser
abarcado em sua totalidade, sendo que cada cristão o acolhe a partir de sua
particularidade e assim também o expressa[47].
A história do cristianismo confirma o que afirmamos, resultando deste fato um
enriquecimento da verdade revelada como reconheceu o Vaticano II (DV 8). Portanto,
toda expressão doutrinal, sem deixar de ser verdadeira, será sempre parcial e
historicamente condicionada, podendo ser enriquecida por outras desde que não
se contradigam. O que garante a unidade na pluralidade dos enunciados é a
pessoa de Jesus Cristo, ao qual se referem todas as expressões.
Daqui podemos compreender a importância da religiosidade popular para a vida da
Igreja. Trata-se de uma inculturação exitosa da fé cristã que, em termos
simples e simbólicos, mediatiza realmente a opção de fé dos mais pobres, de uma
fé que concretiza uma autêntica imediatidade com Deus, que lhe garante
fundamento e consistência. A simplicidade da expressão não nos deve iludir
sobre a seriedade do gesto. É a fé do povo, povo esse que constitui sem dúvida a
grande maioria dos membros da Igreja. Neste mesmo sentido o que caracterizamos
como o “sentido da fé”, apropriação subjetiva do dado revelado guiada pelo
Espírito Santo, constitui uma riqueza maior que as expressões doutrinais da
teologia ou do magistério[48]
e que deveria ser mais valorizada na Igreja apesar das sérias dificuldades em
constatá-la concretamente[49].
O papa Francisco deixa bem claro sua estima por esta percepção de cunho místico
presente nos mais simples (EG 119;
31; 90; 123) e que constitui para ele um autêntico “lugar teológico” (EG 126)[50].
4. Uma reforma
ecumênica?
Confrontando a reforma de Lutero com a de Francisco dentro da
perspectiva deste estudo podemos constatar preocupações, objetivos e conclusões
bastante próximas. Assim vemos que a questão de fundo constitui uma constante
na história do cristianismo, sempre retornando ainda que em contextos
históricos diferenciados. Se o fundamental é a fé vivida, o encontro pessoal
com Jesus Cristo, a opção consciente de moldar a própria vida conforme a do
Mestre de Nazaré, então todo o resto não só constitui os “sinais desta fé” como
afirma Santo Tomás de Aquino, mas também deve estar a serviço da mesma[51].
Com outras palavras, o que caracterizamos como a “instituição eclesial”
constitui a mediação salvífica para os membros da comunidade eclesial. Vimos
também que esta mediação deve expressar a comunhão e a participação de todos na
Igreja, seja nas expressões doutrinais, seja nas opções morais, seja nas
decisões pastorais. Entretanto, devido à diversidade dos cristãos, haverá
inevitavelmente uma diversidade e, consequentemente uma pluralidade[52]
(não um pluralismo) que não elimina a unidade e sim a uniformidade.
Outra conclusão de nosso estudo diz respeito à
impossibilidade de uma determinada Igreja esgotar e representar a totalidade da verdade cristã[53],
seja porque esta verdade remete ao mistério infinito de Deus, seja porque
qualquer Igreja é uma realidade histórica que se autocompreende necessariamente
condicionada pelo seu próprio contexto sociocultural. Temos sempre a verdade
definitiva de Deus revelada em Jesus Cristo na forma provisória da compreensão
humana[54].
Deste modo poderá silenciar ou não devidamente acentuar certos componentes da
fé, ou mesmo compreende-los e expressá-los imperfeitamente. Constatamos já no
interior da Igreja Católica expressões
plurais de cunho doutrinal, litúrgico, pastoral, de organização
comunitária, sem falar na convivência de teologias e espiritualidades diversas
em seu seio que enriquecem a fé de seus membros.
Passado o clima polêmico do século XVI que perdurou até o Concílio
Vaticano II reconhecemos, entretanto, que certas questões continuam separando
as Igrejas cristãs, tais como a sucessão apostólica, o ministério ordenado, a
compreensão da Eucaristia, do papado, da própria noção de comunidade eclesial,
as quais deverão ocupar os esforços ecumênicos dos próximos anos. Porém outras
diferenças podem ter brotado simplesmente de perspectivas de leituras diversas,
embora inevitáveis, pois a grande Tradição nos chega através das tradições
sempre parciais que mutuamente se corrigem e se complementam, como já observava
Y. Congar[55], e
que poderão ser reconhecidas e acolhidas, tal como sucedeu com a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação.
Não estariam subjacentes a certas diversidades apenas um fator de cunho pessoal
ou cultural?[56] Não
seria possível que as Igrejas permaneçam, mas se tornem uma Igreja, como
observava J. Ratzinger[57],
ou como se diz hoje “uma unidade na diversidade”[58]?
Já Tomás de Aquino distingue as verdades de fé que concernem o fim, a saber, a
própria salvação, e aquelas que dizem respeito aos meios salvíficos das quais
brotam, sobretudo, as diferenças doutrinárias[59].
Também W. Pannenberg observa que as diferenças doutrinais não desfrutam de
igual importância, dependendo de sua relação com o núcleo salvífico no mistério
da pessoa de Jesus Cristo[60].
Observação esta já expressa pelo Concílio Vaticano II em seu decreto sobre o
ecumenismo ao falar da “hierarquia das verdades” na doutrina, conforme seu nexo
com o núcleo da fé cristã (UR 11).
Sem pretendermos entrar na complexa questão da unidade
eclesial num cristianismo que se encontra ainda dividido[61],
mesmo reconhecendo avanços consistentes no movimento ecumênico por parte de
algumas Igrejas cristãs, não podemos deixar de verificar semelhanças patentes
entre o impulso reformador de Lutero e o esforço de renovação empreendido pelo
papa Francisco. A tendência da instituição de se autopreservar, de centralizar
o poder, de privilegiar a organização, de se instalar nas conquistas passadas,
apesar da reforma de Lutero e do Vaticano II, continua viva no cristianismo.
Esta constatação transforma a celebração dos 500 anos da Reforma do monge
agostiniano num evento que diz respeito a todos
os cristãos. Seu clamor profético ao reivindicar a dignidade e a liberdade do
cristão em face da sociedade e da instituição eclesial continua atual em nossos
dias. Seu fundamento está no encontro pessoal com Jesus Cristo[62]
que vem a ser o objetivo da própria instituição[63].
Observemos, entretanto, que esta liberdade e esta consciência crítica em face
da instituição pressupõe uma vivência
qualificada de fé[64]
que autentifique a crítica como nascida do amor autêntico a Cristo e como
experiência sofrida com as deficiências da Igreja. Desta experiência pessoal
partiu Lutero, desta mesma experiência empreende Francisco sua reforma.
[1] P.
BERGER-Th. LUCKMANN, A construção social
da realidade, Petrópolis, Vozes, 19784.
[2]
Ver MAX WEBER, Economia e Sociedade I, Brasília,
Ed. UnB, 1991, p. 162.
[3] G.
LOHFINK, Deus precisa da Igreja? Teologia
do Povo de Deus, S. Paulo, Loyola, 2008.
[4] R.
HAIGHT, Dinâmica da Teologia, S.
Paulo, Paulinas, 2004, p. 183s.
[5] J. A. KOMONCHAK, Foundations in Ecclesiology, Boston,
University Press, 1995, p. 146-150.
[6] B. LONERGAN, Method in Theology, New York, Herder and Herder, 19732,
p. 238.
[7] Y.
CONGAR, Vraie et fausse réforme dans
l’Église, Paris, Cerf, 19682, p. 112s.
[8]
JOÃO PAULO II, Ut Unum Sit, n. 95.
[9] A.
SPADARO/C.M. GALLI (edd.), La Riforma e
le Riforme nella Chiesa, Brescia, Queriniana, 2016.
[10]
Y. CONGAR, Ob. cit. p. 100.
[11] S. Th. II-II, q.1 a.6. sed c: “Perceptio
divinae veritatis tendens in ipsam”.
[12] Ibid. p. 118.
[13]
Lonergan (ob. cit.) a caracteriza como conversão moral e cristã.
[14]
J. DELUMEAU, Naissance et affirmation de
la Réforme, Paris, PUF, 1965, p. 48-57.
[15]
Aqui está a maior contribuição de Lutero para o ecumenismo segundo W. KASPER, Martin Luther, Ostfildern, Patmos
Verlag, 2016, p. 68.
[16] O.H. PESCH, Hinführung zu Luther, Mainz, Matthias-Grünewald, 1982, p. 39-44.
[17]
M. LUTERO, Da liberdade do cristão,
S. Paulo, Ed. UNESP, 1997. Os números entre parênteses correspondem à numeração
da obra na edição que utilizamos.
[18]
M. LUTERO, Do cativeiro babilônico da
Igreja, S. Paulo, Martin Claret, 2007. Os números no texto se referem às
páginas desta edição.
[19]
À nobreza cristã de nação alemã, acerca
do melhoramento do Estado cristão; Do cativeiro babilônico da Igreja, para
citar alguns deles.
[20] W. PANNENBERG, Reformation und
Einheit der Kirche, em: Id., Kirche und
Ökumene, Göttingen, Vandenhoeck, 2000, p. 179-181.
[21] PESCH, Ob. cit., p. 69s.
[22] W. PANNENBERG, Kirche und Ökumene, p. 179.
[23]
PESCH, Ob. cit., p. 130.
[24] M.
LUTERO, Do cativeiro babilônico da
Igreja, p. 65.
[25]
PESCH, ob. cit. p. 95-98.
[26]
Uma questão ainda objeto de debate entre os teólogos luteranos. Ver PANNENBERG,
Systematische Theologie III, Göttingen,
Vandenhoeck, 1993, p. 410s.
[27]
M. LUTERO, Do cativeiro babilônico da
Igreja, p. 109.
[28]
M. LUTERO, Da liberdade do cristão
15.
[29] PANNENBERG, Systematische, p. 148.
[30] Ver H. LEGRAND, “Les évêques, les
églises locales et l’église entière. Evolutions institutionelles depuis Vatican
II et chantiers actuels de recherche”, Rev.
Sc. Ph. Th. 85 (2001) p. 461-509.
[31]
Ver A. THOMASSET, “Dans la fidelité au Concile Vatican II. La dimension
herméneutique de la théologie morale”, Revue
d’Éthique et de Théologie Morale, n. 263 (2011) p. 31-61.
[32]
Encontramos uma ótima síntese deste período em: W. KASPER, El Vaticano II:
intención, recepción, futuro, Revista
Teología 52 (2015) p. 95-115.
[33]
Discurso do Santo Padre aos bispos responsáveis do Conselho Episcopal
Latino-Americano (CELAM), em: Pronunciamentos
do Papa Francisco no Brasil, S. Paulo, Loyola-Paulus, 2013, p. 72s.
[34]
Ch. SCHÖNBORN, Apresentação da Amoris
Laetitia (8/4/2016), Doc. Cath.
n. 2523 (2016) p. 98.
[35]
“O anúncio do amor salvífico de Deus precede a obrigação moral e religiosa.
Hoje, por vezes, parece que prevalece a ordem inversa” (Entrevista exclusiva do papa Francisco ao Pe. A. Spadaro, S. Paulo,
Paulus-Loyola, 2013, p. 22).
[36]
W. KASPER, El papa Francisco. Revolución
de la ternura y el amor, Basauri, Sal Terrae, 2015, p. 58.
[37]
S.Th. I, q.21, a.3 ad 2, citado em W.
KASPER, A Misericórdia. Condição
fundamental do Evangelho e chave da vida cristã, S. Paulo, Loyola, 2015, p.
217.
[38]
Aqui se põe a questão de fundo: como
conciliar a norma geral em face do ser humano em toda a sua histórica
complexidade? Ver G. BONFRATE, La “porta aperta” dei sacramenti, em: H. M.
YÁÑEZ (ed.), Evangelii Gaudium: il texto
ci interroga, Roma, Gregoriana Biblical Press, 2014, p. 84.
[39]
Recordemos as condenações passadas feitas à democracia ou aos direitos humanos
por parte do magistério eclesiástico e a tardia rejeição da escravidão. Ver Ch. TAYLOR, Magisterial
Authority, em: M.LACEY-F.OAKLEY, The
Crisis of Authority in Catholic Modernity, New York, Oxford University
Press, 2011, p. 259-269.
[40]
Entrevista exclusiva do Papa Francisco ao
Pe. Antonio Spadaro, S. Paulo, Paulus-Loyola, 2013, p. 10s. Sobre esta
temática remetemos ao nosso texto: A Alegria do Evangelho em ótica inaciana, Itaici 20 (2014) p. 17-33.
[41]
W. KASPER, A Misericórdia. Condição fundamental do evangelho e chave da vida
cristã, S. Paulo, Loyola, p. 216s.
[42] E. ISERLOH, Prophetisches Charisma
und Leitungsauftrag des Amtes in Spannung und Begegnung als historisches
Phänomen, em: W. WEBER (Hrsg.), Macht,
Dienst, Herrschaft in Kirche und Gesellschaft, Freiburg, Herder, 1974, p.
146.
[43] P. VALADIER, Rigorisme contre liberté morale. Les Provinciales: actualité d’une
polémique antijésuite, Bruxelles, Lessius, 2013, p. 42.
[44] K. RAHNER, Der mündige Christ, Schriften zur Theologie XV, Einsiedeln,
Benziger, p. 120.
[45]
“Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las” (AL
37).
[46]
W. KASPER, Teologia e Chiesa II,
Brescia, Queriniana, 2001, p. 238.
[47]
G. LANGEMEYER, Einheit um Pluralität, em: W. GEERLINGS-M. SECKLER, Kirche
Sein. Nachkonziliare Theologie im Dienst der Kirchenreform, Freiburg,
Herder, 1994, p. 241-253.
[48] K. RAHNER, Dogmatische
Randbemerkungen zur “Kirchenfrömigkeit”, Schriften
zur Theologie V, Einsiedeln, Benzinger, 1962, p. 391s.
[49] D. VITALI, Una chiesa di popolo: il
sensus fidei come principio
dell’evangelizzazione, em: H. M. YÁÑEZ, Evangelii
Gaudium: il texto ci interroga, Roma, Gregoriana Biblical Press, 2014, p.
62-64.
[50]
J-F. CHIRON, Sensus fidei et une
vision de l’Église chez le pape François, RSR
104 (2016) p. 187-205.
[51]
Santo Tomás observa ainda ser a fé dos cristãos que sustenta a Igreja: “Fides
est sicut fundamentum, ex cujus firmitate tota firmatur ecclesiae structura” (Comentário aos Colossenses, c.I, 1,5).
[52] W. PANNENBERG, Pluralismus als
Herausforderung und Chance der Kirche, em: Id., Kirche und Ökumene, p. 23.
[53]
Ou da catolicidade da Igreja. Ver
V. LEPPIN-D. SATTLER, Reformation
1517-2017. Ökumenische
Perspektiven, Freiburg-Göttingen, Herder-Vandenhoeck, 2014, p. 73.
[54]
PONTIFÍCIO CONSELHO PARA O DIÁLOGO INTERRELIGIOSO, Diálogo e Anúncio, S. Paulo, Paulinas, 1996, n. 49.
[55]
Y. CONGAR, Diálogos de outono, S.
Paulo, Loyola, 1990, p. 72.
[56]
J. RATZINGER, A propos de la situation oecuménique, em: Id., Faire route avec Dieu, Paris, Parole et
Silence, 2003, p. 239.
[57]
Citado por W. KASPER, Katholische Kirche,
Freiburg, Herder, 2011, p. 436.
[58]
H. MAIER, Diversidade reconciliada: o
projeto ecumênico, S. Leopoldo, Sinodal, 2003.
[59] W. THÖNISSEN, Hierarquia Veritatum.
Eine systematische Erläuterung, Catholica
54 (2000) p. 183.
[60]
W. PANNENBERG, Das protestantische Prinzip
im ökumenischen Dialog, em: Kirche
und..., p. 190.
[61]
Para uma exposição mais completa ver o nosso texto: Ecumenismo e instituição
eclesial, em: M. FRANÇA MIRANDA, A Igreja
numa sociedade fragmentada, S. Paulo, Loyola, 2006, p. 123-146.
[62]
Na expressão de Lutero: “ob sie Christum treiben”. Ver PESCH, Ob. cit. p. 64.
[63] W. KASPER, Martin Luther, p. 24; W. PANNENBERG, Systematische Theologie III, p. 146s.
[64]
Como Bento XVI reconhecia em Lutero. Ver o Discurso ao Conselho da Igreja
Evangélica em Erfurt, La Documentation Catholique 93 (2011) p. 932. x-------------------------------000000000000000000000-----------------------------------------------------x- EVANGELIZAR HUMANIZANDO?
Já é lugar comum
caracterizar este nosso tempo como uma autêntica mudança de época devido às
profundas e diversificadas transformações socioculturais que experimentamos.
Instituições sociais tradicionais como a família, a escola, as entidades
políticas, a nação, bem com o patrimônio cultural e religioso, o etos social
com seus valores e interditos, enfim todo este nosso mundo se vê, queira ou
não, posto diante de desafios inéditos que atingem a toda a humanidade de modo diverso,
embora globalmente propagados pelos modernos meios de comunicação e das mais
refinadas técnicas. Naturalmente o cristianismo, enquanto presente nesta
sociedade com a missão de proclamar a mensagem do Reino de Deus e de procurar
torna-la realidade na história, se vê igualmente desafiado a repensar sua
presença e sua atuação em nossos dias.
O título é
provocativo, mas veremos que não constitui propriamente um dilema. Porém nos
exige pensar juntamente criação e salvação, o humano histórico e o divino
transcendente. Como descobrir o divino no humano sem torna-lo imanente? E nem
confina-lo ao âmbito do “religioso”? Ou reduzir o cristianismo a um simples
humanismo, que o tornaria supérfluo? Naturalmente estas questões não surgiram
de especulações de mentes ociosas, mas brotaram do próprio contexto
sociocultural onde vivemos. Deste modo elas se encontram necessária e
intimamente relacionadas com a configuração do cristianismo, com sua tarefa
evangelizadora, com sua própria compreensão. Não é à toa que tanto se fala hoje
de uma “nova evangelização”. Este estudo pretende ser uma modesta e limitada
contribuição para esta temática. Ele nasceu do impacto que têm os gestos humanitários do papa Francisco que alcançam um efeito
universal na atual sociedade tão diversificada em suas crenças e mentalidades. Posteriormente
percebemos que o problema tem uma abrangência maior e diz respeito à presença
do próprio cristianismo no mundo hodierno e à sua vocação missionária.
Vamos aborda-la
em três partes. Começaremos descrevendo a realidade e a seriedade destes desafios para a fé cristã, que ameaçam
torna-la incompreendida e inócua em sua realidade, dificultada em sua
transmissão a novas gerações e consequentemente privada de uma presença
pertinente na sociedade. Exporemos numa segunda parte os pressupostos básicos requeridos para uma nova modalidade da missão
cristã no mundo, ainda que apresentados em linhas gerais. Finalmente, numa
terceira e última parte, buscaremos mostrar como a promoção do que
caracterizamos como “humanismo cristão”
constitui o foco principal da nova evangelização, como se deve concretizar a missão cristã em nossos dias e que
mudanças ela implica na mentalidade
dos cristãos e nas estruturas tradicionais[1].
1. Os desafios atuais
Quando
imaginamos o que deveria ser a tarefa evangelizadora inconscientemente pensamos
no que marcou o passado missionário do cristianismo, dentro e fora da Europa,
no primeiro e no segundo milênio. Nos primeiros anos teve o cristianismo figuras
remarcáveis de sacerdotes e bispos, religiosos e leigos, dotados de muita
coragem, muita fé e de muita ousadia em iniciativas originais. Depois de
Constantino e da ascensão a religião oficial esta missão consistiu em
cristianizar culturas, costumes e religiões no continente europeu. Nas terras
de missão, sobretudo a partir do século XVI, a missão era mais árdua porque seu
objetivo era dirigido a povos bem diversos dos europeus, com barreiras
significativas de linguagem e de tradições nativas. Mas a presumida consciência
da superioridade da cultura ocidental e a forte convicção da verdade do
cristianismo, aliadas naturalmente ao poderio bélico, ajudou, sem dúvida, a
conquistar para a fé cristã muitos nativos da África, da Ásia e da América
Latina. De fato, mesmo reconhecendo o heroísmo de muitos missionários, sabemos
que toda evangelização necessita de mediações para se fazer ouvida e seguida. A
visão cristã do mundo dominava nestes séculos, caracterizados posteriormente
como a época de cristandade. Sabemos
que nos séculos mais recentes ela viu seu campo de influência ser reduzido com
o advento da sociedade pluralista e secularizada, deixando cada vez mais de
constituir a abóboda comum daquelas sociedades, outrora comprovada por sua
presença e atuação marcante no setor político, cultural, econômico, ético e
familiar.
Com o advento da
modernidade a sociedade homogênea e cristã do passado chega a seu fim. A
hegemonia da razão, a liberdade de pensamento e de opção religiosa, a autonomia
do Estado, o pluralismo cultural, entre outros fatores, conduziram ao
nascimento do Estado leigo, de uma sociedade pluralista, tanto cultural quanto
religiosa, de visões diferentes da realidade e de convicções diametralmente opostas
tendo que conviver simultaneamente, de mundos fragmentados com linguagens e
práticas próprias. Esta realidade polimorfa agravada pelas rápidas e sucessivas
transformações, priva o cristianismo de sua indispensável mediação social, tornando sua linguagem, em alguns casos,
ininteligível para muitos e enfraquecendo assim sua atuação apostólica.
O fato de não
mais determinar a ética e não mais fundamentar o político apareceu para muitos
cristãos como sinal de fraqueza do cristianismo no mundo atual, já que ele
haviam se acostumado com um cristianismo dotado de maior poder e raio de
influência. Outros, que não são cristãos e consideram o cristianismo apenas
como uma realidade social e histórica, achavam que o cristianismo seria a
religião do fim da religião, pois a sociedade tornada adulta e emancipada de
qualquer tutela de cunho religioso dispensa daqui para frente qualquer
justificação que não provenha da razão humana. No fundo, tanto uns como outros
se encontravam limitados a uma leitura meramente funcionalista do cristianismo
e sentiam dificuldade em imagina-lo com uma configuração histórica diversa
daquela que vigorou a partir de Constantino.
Porque o advento
do Estado leigo e da sociedade secularizada não implica sem mais o
desaparecimento da religião. De fato, a laicidade não exclui a presença e
atuação de grupos religiosos mesmo na esfera pública, como pretendeu, por
razões históricas bem determinadas, o laicismo francês, exceção em meio aos
demais Estados leigos no mundo atual, que sabem receber a colaboração de
entidades religiosas mantendo sua autonomia de direito. Observemos também que a
sociedade secularizada não implica que seus membros também estejam
secularizados. Pelo contrário, o que vemos hoje é uma inflação de
religiosidades de todo tipo, algumas bastante ambíguas, e que denotam a busca
de muitos de nossos contemporâneos por sentido, orientação e ajuda para se
enfrentarem com os inúmeros desafios desta vida, já que a cultura atual carece
de valores e ideais consistentes para lhes oferecer, limitando-se aos
imperativos do bem-estar e do êxito financeiro. Realmente hoje a linguagem
dominante é de cunho funcional, desqualificando como inócuo o discurso
religioso e como utópico o discurso ético.
Como proclamar o
Evangelho numa tal sociedade com tal diversidade cultural e religiosa?
Dever-se-ia assumir a bandeira da inculturação da fé e oferecer discursos e
práticas plurais respeitando as idiossincrasias de cada grupo social? Não
perderia deste modo o cristianismo em nitidez e unidade? Ou, pelo contrário,
como opinam outros, deveria se configurar diversamente, já que o cristianismo
constitui uma contínua interpretação do evento Jesus Cristo ao longo da
história e só assim mantem sua identidade, sua pertinência salvífica e sua
atualidade? Não permaneceu o cristianismo demasiado preocupado com sua própria
sobrevivência após o fim da cristandade, fechado em si mesmo, e pouco ousado em
se lançar na missão de evangelizar esta sociedade complexa que tem diante de
si? E como poderia fazê-lo diante de um público tão diversificado? Haveria uma
linguagem de tal modo universal que pudesse ser captada por todos?
Estas
interrogações apontam para o atual desafio de uma autêntica evangelização, que
se apresenta em diversos campos da missão cristã. Começaremos pelas instituições
confessionais que são as que mais sentem o problema. Veremos como este desafio
atinge sem mais outras instituições sociais e os demais areópagos a serem
evangelizados e, até mesmo, as comunidades cristãs.
Muito brevemente
e reconhecendo de antemão a necessidade de maiores precisões de cunho
histórico, podemos constatar a existência e a atuação das instituições cristãs no período caracterizado como o tempo da
cristandade. Nesta época o espírito cristão teve a iniciativa de criar
instituições que aliviassem os sofrimentos das camadas mais pobres da
sociedade, tais como casas de misericórdia, asilos, hospitais, albergues,
leprosários, etc. O mesmo se deu na área da educação com escolas e colégios,
tendo mesmo a universidade sua origem graças ao cristianismo. Seja no setor
assistencial, seja no setor educativo, as instituições confessionais desta
época supriam o que a sociedade não oferecia. Naturalmente, devido ao fato de
que os membros desta sociedade eram cristãos, a evangelização se realizava, seja
pelo testemunho de vida dos responsáveis, seja pelo anúncio explícito da
Palavra de Deus, seja pela prática sacramental. Deste modo ao remediar os
sofrimentos corporais ou formar as mentes dos alunos se transmitiam valores
cristãos, portanto a pastoral já estava aí presente e atuante.
Com o advento da
modernidade, a sociedade homogênea e cristã do passado chega a seu fim. Já
vimos os fatores que geraram esta sociedade leiga e pluralista, na qual o poder
civil assume o lugar das instituições cristãs no âmbito assistencial e
educativo. Preocupadas em proteger seus membros desta sociedade heterogênea e
vista como hostil à sua mensagem, as instituições cristãs assumem um
posicionamento contra cultural e criam “redutos de cristandade” para poder dar
assistência e instrução a seus membros em ambientes preservados. Deste modo,
por exemplo, nas escolas, universidades e hospitais católicos se respiravam
valores cristãos e a formação religiosa acontecia naturalmente por se dirigir a
um público católico, portanto homogêneo[2].
Em nossos dias
um maior controle do Estado em nossas instituições educativas e assistenciais,
seja em vista de uma uniformização em relação às demais instituições não
confessionais, seja pela ajuda financeira que elas necessitam para sobreviver,
acaba por abrir suas portas a um público
diversificado e nem sempre em sintonia com a identidade confessional destas
mesmas instituições. De um lado não podemos renunciar ao múnus da
evangelização, pois nossas instituições perderiam seu sentido; de outro lado,
não podemos obrigar aqueles que nos procuram e que não compartem nossa fé a se
submeterem a um discurso que não querem ouvir. Este desafio vem sendo objeto de
estudo e de discussão em vários países, sobretudo no setor da educação. As
propostas de solução são numerosas, indo desde o ensino de várias religiões até
ao outro extremo de absoluto silêncio sobre temas religiosos[3].
Este desafio se
vê engrandecido quando o público meta da evangelização é a nossa própria
sociedade, complexa, diversificada, tolerante, desprovida de referenciais
consistentes, aberta às diferentes opiniões, incontrolável no afã de converter
qualquer realidade ou atividade em mercadoria, entupida de tantas informações
que não consegue digerir, forçando seus membros a uma vida acelerada, superficial,
consumista, horizontal, sempre sob a pressão da concorrência e da produtividade
máxima. Neste contexto sociocultural instável e em contínua transformação como
evangelizar? Alguns podem se enganar apresentando manifestações cristãs,
sobretudo de cunho devocional, sem perceber que, em boa parte dos casos,
estamos às voltas com um cristianismo cultural o qual, de fato, não tem real
incidência na vida dos que o aceitam. Além disso, numa sociedade onde
proliferam múltiplas mentalidades e correspondentes leituras da realidade,
também as realidades cristãs recebem interpretações espúrias, sem que as
instituições cristãs possam impedi-lo. Deste modo publicações que exploram
temas cristãos por serem, de certo modo, familiares a muitos, deturpam
seriamente as verdades da fé e assim distanciam as pessoas do seu autêntico
significado.
Sem dúvida ainda
encontramos em nosso país “bolsões” de um cristianismo pré-moderno, sobretudo
nas camadas mais simples da sociedade, cuja fé é real e profunda, embora
frequentemente expressa de modo imperfeito e até simplista. Mas a chegada dos
modernos meios de comunicação nos demonstra que tais bolsões têm seus dias
contados, como comprova a dificuldade dos pais em transmitirem sua fé aos
filhos, já atingidos pela atual cultura. Outro obstáculo à evangelização na
atual sociedade, ainda dotada de uma certa religiosidade cristã, seja ela
cultural ou não, provem da própria instituição cristã ao transmitir determinada
imagem de Deus que não bem traduz o Pai revelado por Jesus Cristo, dando uma
ênfase maior ao pecado do que à graça, demonstrando uma preocupação doutrinal
que deixa em segundo plano o lado existencial e místico da fé, priorizando uma
hipertrofia do poder em detrimento do serviço (diaconia), relegando
consequentemente o laicato a uma massa passiva e sem voz, em contraste com a
mentalidade atual que exige a participação de todos na construção da
convivência social. E a maioria de nossos contemporâneos não dispõe de estudos
teológicos para saber distinguir o que deve ser uma comunidade cristã de suas
configurações históricas menos fiéis a sua verdade.
No fundo estamos
afirmando que a evangelização não pode prescindir da pessoa real à qual se dirige. O ser humano em geral não existe, e a
mensagem cristã é uma mensagem salvífica, que deve se confrontar com os anseios
e as dificuldades bem concretas presentes em nossos contemporâneos. Para isso
deve ela escutar mais a sociedade (EG 171), suas carências e suas realizações,
seus inconformismos e seus valores, suas motivações e suas frustações. Deus
também nos fala através dos “sinais dos tempos”, Deus também age nas pessoas
distantes de um cristianismo professado, Deus se serve sempre de mediações
humanas na condução da história. Aceito isto, o problema se agrava pois esta
sociedade não é homogênea, mas polifônica, lançando nos ombros das instituições
cristãs uma tarefa que as ultrapassa. Pois teria de dispor de quadros
suficientemente amplos para apresentar uma pluralidade de discursos adequados à
diversidade plural dos ouvintes, pluralidade essa sempre em contínua
transformação como nos demonstra a história. Realmente, uma missão impossível!
Mesmo num
ambiente mais tranquilo e homogêneo como são as comunidades cristãs estabelecidas,
como as paróquias, o desafio, embora em escala menor, continua presente. Embora
reconhecendo a força evangelizadora da Palavra de Deus, da celebração dos
sacramentos, do contato com autênticos cristãos, nos perguntamos se esta
evangelização chega de fato a merecer este nome para a maioria dos seus frequentadores.
Pois boa parte deles busca esta instituição para receber sacramentos, fazendo
dela mais uma agência de serviços do que propriamente uma comunidade humana
cristã. Daí a multidão de batizados não devidamente evangelizados, daí
igualmente a ausência de uma experiência real de vida comunitária, ou a
dificuldade séria de fazer do cristão um discípulo missionário, já que o
sentido último de toda vocação cristã é sua índole missionária. Naturalmente
urge uma nova configuração das comunidades cristãs, especialmente nas cidades,
mas importante aqui é reconhecer que também nestes ambientes mais selecionados
a questão da evangelização retorna sempre. Sem dúvida a iniciação cristã
proposta no Documento de Aparecida significa um passo adiante em vista desta questão.
Mas para realiza-la a paróquia deverá certamente se transformar.
Uma possível resposta aos desafios?
Não pretendemos
aqui oferecer uma solução pronta para tais desafios. Falta-nos a competência e
a experiência nos vários âmbitos sociais onde aparecem esta problemática. Porém
podemos considera-la com outros olhos, levando a sério o atual contexto sociocultural
no qual vivemos. Motivou-nos as palavras do papa Francisco em sua Exortação
Apostólica A alegria do Evangelho:
“Convido todos a serem ousados e criativos nesta tarefa de repensar os
objetivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores das respectivas
comunidades” (EG 33). Assim vamos tentar oferecer uma nova perspectiva de leitura que possibilite uma saída para o atual
impasse. Nova em relação ao passado, porque, queiramos ou não, temos sempre
diante dos olhos o que foi considerado válido e eficaz na época da cristandade.
Muitos a veem como uma época de ouro do cristianismo ao silenciar suas lacunas
e seus erros. De qualquer modo naqueles anos o ardor missionário do
cristianismo estava voltado para outros povos situados fora da Europa e a pastoral
consistia, em grande parte, na transmissão da fé às novas gerações através de
uma boa formação religiosa e da oferta de meios de santificação, especialmente
das devoções e dos sacramentos. Era uma pastoral que hoje caracterizamos como
“pastoral de manutenção” e que se revela insuficiente em nossa sociedade
secularizada e pluralista.
Pois o nosso
público, como já acenamos anteriormente, é um público altamente diversificado,
que espelha a atual sociedade, mesmo no interior das instituições cristãs. Pois
estas abrigam inevitavelmente não só bons cristãos, mas também cristãos não
evangelizados, cristãos de diversas confissões, adeptos de outras religiões, ou
ainda pessoas avessas a qualquer credo religioso. Só esta realidade já exigiria
uma pluralidade de discursos e práticas que se comprova irrealizável em nossas
instituições. Daí surge a pergunta: seria possível uma pastoral com tal grau de
universalidade que pudesse ser pertinente,
captada, aceita e seguida pelos diversos grupos humanos presentes na sociedade?
Naturalmente esta pastoral deveria provir do Evangelho para ser realmente uma
pastoral cristã. Permite o Evangelho uma nova perspectiva de leitura do próprio
cristianismo que abrisse a possibilidade de uma nova pastoral? Tais questões
vão dirigidas à teologia à qual incumbe refletir sobre a fé cristã. Tal será
nossa abordagem.
Por conseguinte,
pretendemos oferecer uma alternativa à prática pastoral que consiga, de um
lado, sensibilizar diferentes mentalidades e crenças, e, de outro, se manter
fiel à mensagem evangélica. Começaremos por apresentar os pressupostos teológicos indispensáveis para podermos compreender a
correta missão do cristianismo em vista desta atual sociedade. São eles a
pessoa de Jesus Cristo ao anunciar e realizar o Reino de Deus, a necessária
distinção entre fé e religião e o caráter simbólico do cristianismo. Na parte
final veremos a importância do humanismo cristão, a missão cristã em nossos
dias, e as necessárias e urgentes mudanças nas instituições cristãs,
justificando assim a nova estratégia pastoral aqui sugerida.
2. Pressupostos teológicos
A. Jesus e o Reino de Deus
Não podemos
falar de Jesus Cristo sem incluir a realidade do Reino de Deus. Sua pessoa, sua pregação e suas ações ficariam
incompreensíveis sem uma clara referência ao objetivo primordial de sua
existência. Pois Jesus nunca escondeu ter sido enviado pelo Pai para levar à plenitude o desígnio salvífico de
Deus. Este desígnio começa já com a criação, pois através dela Deus quer fazer
a humanidade participar de sua felicidade e de sua vida eterna, felicidade esta
que deverá ter início já neste mundo. E como o ser humano é essencialmente
social, este desígnio salvífico não se limita apenas ao indivíduo, mas diz
necessariamente respeito à sociedade. Sabemos, entretanto, que o pecado
enquanto fechamento a Deus e ao próprio semelhante, constituiu um entrave à
realização do projeto divino. Daí a necessidade de educar um povo, de
constitui-lo como seu povo através da Torá e de líderes como Abraão, Moisés e
os profetas.
O Reino, já
antes de Cristo, era uma realidade em curso, a qual constitui mesmo o quadro de
referência que dá sentido às palavras e às ações do próprio Jesus Cristo. Pois
ao começar sua vida pública proclamando que “cumpriu-se o tempo e o Reino de
Deus está próximo: convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15s), Jesus atesta
que este Reino definitivamente irrompe em
sua pessoa. Daí que toda a sua vida consistirá em promover este Reino. Não
um Reino confinado à interioridade da pessoa, já que necessariamente atinge
também as condições concretas em que ela vive. Assim suas ações buscam socorrer
os que sofrem, os marginalizados, os desesperançados, os pecadores, os pobres
(Mt 11,5). Suas palavras visam à implantação de uma sociedade fraterna e justa
na obediência à vontade de Deus, realizando a soberania divina e levando à
plenitude o amor fraterno já presente no povo da antiga aliança. O Povo de Deus
pode ser considerado como a família de Deus, pois seus membros são filhos do
mesmo Pai e irmãos entre si (Mt 12,48-50). Mas também pode e deve ser
considerado uma sociedade alternativa
à sociedade marcada pelo egoísmo humano pela injustiça e pelo sofrimento dos
mais fracos[4].
Pois ao cristianismo incumbe ser a própria sociedade querida por Deus, redimida
por Cristo, animada pelo Espírito, antecipação da comunidade celeste, pois nela
não só se prega, mas se vive a liberdade, o amor e a justiça[5].
“Deus, em Cristo não redime somente a pessoa individual, mas também as relações
sociais entre os homens” (EG 178).
Portanto, a fé
cristã se dirige não a um Deus qualquer, mas ao Deus de Jesus Cristo, ao Deus do Reino, ao Deus cuja ação
salvífica na história humana busca realizar uma convivência fraterna entre os
seres humanos (EG 180). Esta ação se realiza através de homens e mulheres que
vencendo suas tendências egocêntricas se dedicam a ajudar os mais necessitados
e a viver a aventura do amor cristão. “Uma fé autêntica, que nunca é cômoda nem
individualista, comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir
valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por ela” (EG
183). Portanto, crer no Deus do Reino implica sintonizar com seu plano
salvífico, incutir amor e justiça nesta sociedade individualista, ser um fator
de humanização da mesma, numa palavra, como Jesus viver descentrado de si mesmo
e voltado para seu semelhante. Esta é a verdadeira
fé que atua pelo amor (Gl 5,6). Consequentemente toda a missão do
cristianismo consiste em proclamar esta oferta do Reino. Toda a sua ação
evangelizadora consiste em levar homens e mulheres a trabalhar pela realização
deste Reino. “Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176).
Nisto consiste fazer a vontade do Pai como o fez Jesus, nisto consiste ser
discípulo de Jesus, nisto se caracteriza essencialmente
a pastoral cristã. Numa palavra, Deus sempre age na história através de
mediações humanas, como nos comprova a própria Bíblia.
B. A distinção entre fé e religião
Quando falamos
de cristianismo pensamos logo numa das religiões da humanidade sem nos darmos
conta do modo peculiar com que o
cristianismo pode ser considerado sem mais uma religião. Nos Evangelhos Jesus
demonstra em suas ações e em suas palavras um certo distanciamento da religião
do seu tempo. Pois relativiza o templo de Jerusalém (local sagrado), o dia de
sábado (tempo sagrado), autoridades religiosas (pessoas sagradas), tradições
religiosas, sempre em favor do ser humano
em necessidade, como nos atestam os vários episódios narrados pelos
evangelistas. Sua missão em vista da realização do Reino de Deus não estava
voltada para doutrinas, ritos, leis, prescrições morais, práticas religiosas,
mas simplesmente para o amor, o perdão, a convivência pacífica, a partilha dos
bens, a paz e a justiça na sociedade. O sagrado para Jesus era o próprio ser humano (Lc 10, 25-37; Mt 25, 31-46).
Para ele, o relacionamento com o Deus do Reino não podia descartar o próprio
semelhante, nem ignorar as condições reais em que vivia. Jesus retoma assim uma
linha profética que lhe trará problemas com as autoridades religiosas de seu
tempo.
Quando pensamos
em religião nos vem imediatamente à
mente doutrinas, ritos, normas, autoridades, que caracterizam um grupo social,
distinguindo-o de outros grupos religiosos. O sagrado se encontra nestes
elementos e a pessoa religiosa deve aderir aos mesmos, submetendo-se a suas
prescrições de cunho doutrinal, ético ou ritual. Cria-se assim uma separação
entre a esfera do sagrado e o âmbito do profano, a saber, da vida concreta. Com
razão se observa que as religiões por se distinguirem entre si acabam por se
considerarem rivais e provocarem conflitos na humanidade, como realmente nos
comprova a história. Não podemos afirmar que Jesus pretendeu o fim da religião,
mas devemos sustentar que seu projeto implicava uma outra modalidade de
religiosidade que não separava sagrado e profano, que assumia plenamente a vida
humana com toda a sua riqueza e complexidade, que unia o culto ao Pai com o
cuidado com o irmão, que determinava se dar o encontro com Deus nas próprias
opções cotidianas em favor do projeto de Deus[6].
Já foi sugerida
a distinção entre fé, crença e religião[7]. A
fé consistiria numa resposta pessoal e consciente ao convite de Deus
em Jesus Cristo pela orientação da própria
vida em vista da realização do Reino de Deus na humanidade. Portanto, ela
implica uma entrega confiante ao Deus de Jesus Cristo que acaba por estruturar
toda a vida do cristão. A crença diz
mais respeito aos dogmas e às doutrinas diversamente entendidas e acolhidas
pelas pessoas, herdadas de uma tradição familiar que prescinde de convicções
firmes e refletidas. Religião já
indicaria o conjunto de leis, normas morais, práticas cultuais, devoções, que
caracterizam uma comunidade de fiéis. A história do cristianismo nos mostra que
a época de cristandade possibilitou para muitos o acesso a crenças e à religião
cristã, mas não a uma fé consciente. Daí o afastamento de muitos em nossos dias
quando a sociedade pluralista e secularizada já não sustenta tal religiosidade.
A fé implica
mais do que pertencer à religião cristã. Pois atinge e transforma a totalidade
da pessoa pelo acolhimento consciente de Jesus Cristo: como caminho tornando-se seu discípulo, como verdade interpretando toda a realidade a
partir de sua pessoa e como vida
experimentando seu Espírito que nos faz relativizar as limitações e os
sofrimentos próprios da condição humana[8].
Pela fé em Deus Transcendente a pessoa se abre para além de si mesma, vence a
prisão de seu egoísmo, sente-se levada por uma força que a liberta para os
outros, experimenta que Deus se encontra no ser humano acolhido e, portanto, na
realização de seu Reino entre nós. Pois o Deus de Jesus Cristo não pode ser
isolado de seu projeto salvífico, assim como o amor a Deus não pode prescindir
do amor fraterno. A fé nos lança nesta aventura que é a existência humana no
seguimento de Cristo e na fidelidade a Deus ao nos tornar conscientes de nossa
responsabilidade na história. A fé cristã é, portanto, essencialmente
missionária, porque nos torna participantes ativos no projeto de Deus, nos faz
experimentar estar em sintonia com Deus e sentir a alegria de levar vida aos
outros (EG 10).
Por outro lado,
a centralidade da fé que opera pela caridade no relacionamento com Deus não
exclui que a mesma se expresse em doutrina, ganhe corpo no culto, se submeta a
normas morais e se institua como comunidade de fiéis. Mas já Santo Tomás de
Aquino observava: a religião não é a fé, apenas os sinais exteriores que a
manifestam (S.Th. II-II, 94, 1 ad 1). Naturalmente a vida da fé necessita de
tais sinais exteriores que a tornam mais consciente, mais forte, mais lúcida.
Entretanto nos perguntamos se o cristianismo não se prendeu demasiado à
dimensão religiosa da fé cristã, deixando em segundo plano sua dimensão mais
propriamente evangélica. Quantos de
nossos contemporâneos conhecem apenas fragmentos secundários da fé, que os
impede de chegar ao “coração do Evangelho”, à “beleza do amor salvífico de Deus
manifestado em Jesus Cristo” (EG 36). “O Evangelho convida, antes de tudo, a
responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós
mesmos para procurar o bem de todos” (EG 39). E um cristão que se prende a
enunciados doutrinais ou práticas tradicionais se desestabiliza com as questões
que lhe são postas, e pode tornar-se intolerante e até agressivo[9].
C. O cristianismo como realidade simbólica
Entretanto
reduzir o cristianismo a um humanismo evangélico não equivaleria a vê-lo
desaparecer? Onde estaria sua identidade? Onde estaria sua referência a Deus, a
uma realidade transcendente? Estas questões nos pedem uma reflexão sobre a natureza simbólica do próprio
cristianismo. Como pode Deus, mantendo sua transcendência, se fazer presente e
atuante em nosso mundo, a não ser através de símbolos?[10]
Pois estes apontam para além de si próprios, remetem a outra realidade, deixam
transparecer neles o que não são. Não são meros sinais convencionais, como os
semáforos do tráfego. Pois, de fato, participam
e partilham de algum modo da realidade neles simbolizada. A tal ponto, que
se pode dizer que neles a realidade transcendente está presente e atuante. Esta
afirmação vale tanto para uma celebração sacramental como para a vida de um
santo. De fato, no cristianismo tudo é simbólico: a Bíblia, a comunidade
eclesial, os sacramentos, a Palavra de Deus, os dogmas, os pronunciamentos do
magistério, pois sua finalidade última ultrapassa sua materialidade remetendo a
pessoa para Deus. E como Deus se revela ao vir nos salvar, tais símbolos são sinais salvíficos, que devem ser
captados e aceitos pelo ser humano para tornar realidade o que significam.
Entretanto, para
que o símbolo possa ser compreendido como tal é importante que seja captado ou interpretado em sua
verdade simbólica. Só assim ele pode comunicar o que pretende. Para isto deve
haver um olhar, um interesse, uma participação da pessoa na realidade
simbolizada. Deve haver um envolvimento existencial, subjetivo, e até mesmo
experiencial para que o símbolo possa se manifestar em toda a sua verdade. Caso
contrário serão considerados apenas em sua realidade finita e como tal mal
interpretados. Neste ponto já vislumbramos duas causas entre outras para certa
indiferença religiosa. A primeira vem dos próprios símbolos cristãos não
devidamente entendidos, por se apresentarem numa linguagem incompreensível para
muitos, como nos comprovam algumas formulações doutrinais e certos textos
litúrgicos[11].
A segunda é mais desafiante, pois provem da própria sociedade pluralista onde
muitos carecem do horizonte interpretativo próprio da fé cristã. Com outras
palavras carecem de uma intencionalidade religiosa explícita e consciente[12]. Como
evangelizar, como fazer para leva-los a acolher as verdades salvíficas
presentes nestes símbolos, se lhes falta o olhar adequado? Daqui brota ainda
uma outra interrogação: que símbolos cristãos poderiam sensibiliza-los para a
fé?
Uma primeira
resposta estaria na própria vida do
cristão como realidade simbólica. Pois “perseverar na prática do bem” (Rm
2,7) em nossa atual sociedade contém em si uma referência inequívoca a Deus.
Vejamos. O ser humano está continuamente manifestando através de seu
comportamento o que tem no coração. Seus ideais, seus valores, seus sentimentos
se tornam inevitavelmente visíveis
através de seus gestos e de suas palavras. A vida concreta do cristão remete à sua fé no Deus de Jesus Cristo,
no Deus do Reino, pois somente sua fé pode explicar um comportamento que
destoa, muitas vezes, do que encontramos na sociedade. Somente sua fé indica o
mistério da cruz, pois não se ama sem renunciar a si próprio e a seus
interesses. O testemunho de vida do
cristão aponta assim para Jesus Cristo
vivo que atualmente determina, orienta, dá sentido e força para sua
existência. Em si ele irradia Deus para seus contemporâneos, como o fizeram um
Francisco de Assis ou uma Teresa de Calcutá. De fato, somos cristãos porque
acolhemos o testemunho de vida dos que nos precederam, nossos pais ou outros[13].
Depois do que
vimos sobre o Reino de Deus e o sentido último do cristianismo, a saber,
promover uma humanidade querida por Deus, tendo Jesus Cristo como protótipo que
a possibilita através da ação de seu Espírito, ganha o testemunho de vida uma enorme importância devido à dificuldade de
uma proclamação universal da mensagem cristã na atual diversidade da nossa
sociedade pluralista. Já Paulo VI afirmava que nossos contemporâneos escutam
mais as testemunhas do que os mestres, e se escutam estes últimos é porque eles
são testemunhas (Evangelii Nuntiandi 41). A coerência ética na vida concreta, a
sensibilidade pelos mais desfavorecidos, a compaixão pelos sofridos, são traços
essenciais da fé cristã realmente vivida e, sobretudo, também captados pela nossa atual sociedade em
meio a todas as diferenças nela encontradas. Estes traços não podem ser
realidade apenas em alguns personagens que se destaquem, mas deveria se tornar
uma fonte de questionamento para qualquer cristão. Portanto um modo de existência que atinge a todos, que
interpela, que arrasta, num palavra, que evangeliza. Mas que exige de cada
cristão uma maior coerência entre sua
fé professada e sua vida concreta, uma maior preocupação com o ser humano do
que com doutrina-lo, agrega-lo ou conquista-lo para o nosso meio.
Porém nossa
questão só foi parcialmente
respondida. Pois ela suscita imediatamente outras perguntas: por que este
testemunho de vida toca tanto aos nossos contemporâneos? Como esta linguagem
pode ser captada por todos e, portanto, se constituir como linguagem universal?
É o que veremos a seguir.
3. Uma Nova Evangelização?
Poderíamos
iniciar esta parte lançando a pergunta: por que nova? Pois a mensagem salvífica
do cristianismo é sempre a mesma e é afinal o que o caracteriza e identifica
desde os seus primórdios como o anúncio da Boa Nova do Reino (Mt 4,23), pelo
qual Cristo deu sua vida e ressuscitou como Paulo transmitia aos cristãos de
Corinto (1Cor 15, 3s). A novidade portanto não diz e nem pode dizer respeito à
mensagem cristã, mas ao modo de anuncia-la.
Pois a sociedade sofreu transformações substanciais nas últimas décadas.
Assistimos o final da época de cristandade. O cristianismo se depara com um
outro cenário que dele exige mudanças em seu posicionamento diante da
sociedade, em sua linguagem, em suas práticas. Então entendemos a razão de ser
do Concílio Vaticano II, das Assembléias do CELAM, da intencionalidade presente
nas Encíclicas de João Paulo II e de Bento XVI, bem como nas atitudes e nas
palavras do papa Francisco. Sendo a missão
a razão de ser do próprio cristianismo, tocar na compreensão da mesma e na
modalidade de sua atividade significa, em última instância, tocar no próprio
cristianismo. Por isso mesmo sua configuração histórica se transformou (e
continuará sempre se transformando quando se fizer necessário) em vista de sua
missão evangelizadora, como nos ensina o passado.
A. O humano cristão
No ponto a que
chegamos já dispomos de uma base suficiente para pôr em evidência traços e
valores especificamente cristãos, mas que não apareciam como tais no passado.
No fundo se trata de repensar o cristianismo a partir do Evangelho, recuperando sua simplicidade e sua profundidade, sem
mencionar ainda sua universalidade. Deste modo poderemos corrigir o hiato entre
a fé e a vida, entre o cristianismo e a sociedade, entre o sagrado e o humano, realidades
que, embora distintas, estão profundamente unidas. À luz do Reino de Deus,
proclamado e realizado na existência terrena de Jesus de Nazaré, o cristianismo
não se vê tanto como uma religião entre outras, embora deva recorrer a uma
linguagem simbólica, possível de ser captada pela humanidade em cada etapa de sua
história, já que se refere a uma realidade transcendente não circunscrita ao
nosso mundo finito e limitado. Julgamos que a realidade do Reino de Deus,
objetivo primeiro da atividade salvífica de Jesus Cristo, não foi devidamente
valorizada na história do cristianismo, nem adequadamente compreendida por ter
sido espiritualizada. Deste modo
sofreu o cristianismo ao longo dos séculos certas patologias por influência de
interpretações unilaterais que, ainda hoje, povoam o imaginário de muitos dos
nossos contemporâneos levando-os à rejeição da verdadeira fé cristã. Num tempo
em que experimentamos uma desvalorização da pessoa humana sacrificada a uma
racionalidade funcional e produtiva, na qual o ser humano é somente uma peça de
reposição, em que assistimos ao crescimento das violências e das desigualdades
sociais, a uma crescente indiferença pelos sofrimentos alheios expostos
diariamente pela mídia, não é de admirar que vozes se façam ouvir em defesa de
um humanismo autêntico.
Entretanto este
humanismo se apresenta como um humanismo “fechado” ou “imanente”, já muito bem
descrito por Charles Taylor, que aponta também com lucidez seus pontos fracos[14].
Certa separação entre o divino e o humano que chegou até a certa oposição no
cristianismo passado foi um dos fatores que ocasionou o emergir de um humanismo
sem transcendência, ou melhor, cuja transcendência se encontra no próprio ser
humano, sua dignidade, sua liberdade, sua bondade, prescindindo completamente de
um recurso a qualquer realidade “de fora”. Deste modo a vida vivida com
autenticidade constitui o local do “sagrado” sem necessidade alguma da
religião.
Esta é a tese
defendida, entre outros, por Luc Ferry[15]
que busca fundamentar um humanismo meramente laico, rejeitando qualquer dado
que não provenha da razão, como vindo meramente da autoridade, apoiando-se numa
concepção vertical de revelação ausente hoje em qualquer sã teologia, e cedendo
à tentação racionalista já que a razão não consegue fundamentar-se a si própria[16],
sem falar também que a mesma só pensa a partir do chão da história e dos
horizontes hermenêuticos que lhe estão disponíveis. Também é interessante
observar que os ideais e valores propugnados pelo autor denunciam claramente
suas raízes cristãs! Assim no final do livro confessa se impressionar com o
“conteúdo dos Evangelhos” e reconhece no cristianismo a “religião do Amor”[17]. Embora
passe em silêncio as consequências funestas do racionalismo[18] e
reconheça que também este humanismo de transcendência meramente humana está
envolto no mistério[19], o
texto é estimulante para nós cristãos.
Pois nos obriga
a olhar para trás, denunciar os desvios ocorridos na história do próprio
cristianismo, voltar às fontes do Evangelho e saber proclamá-lo em sua
inteireza e radicalidade para nossos contemporâneos. À oposição entre o divino
e o humano, pressuposta por este autor, podemos acrescentar a proximidade entre
Deus e o sofrimento, que somados à busca pela felicidade, aqui e agora,
característica desta atual sociedade, agravada não só pelo conflito das
interpretações (pluralismo), mas também pela crise dos símbolos tradicionais,
exige que repensemos, não as verdades cristãs, mas o modo como foram entendidas e expressas, bem como certas práticas
legadas por nossos antecessores.
As questões não
respondidas que brotam de uma concepção meramente imanente do ser humano ganham
sentido, coerência e transparência quando consideradas na perspectiva da fé
cristã. Trata-se de uma interpretação, pois a hipótese laica também é uma
interpretação, já que est última se encontra embutida em qualquer conhecimento
humano. Mas uma leitura não irracional ou contra a razão, pois estamos diante
de uma outra modalidade de conhecimento, não voltado para o mundo visível, mas
para a realidade invisível, única a nos responder as questões mais essenciais
como: qual o sentido da vida? Ou qual o sentido de toda a realidade? Ao acolher
livremente na fé a resposta que lhe é oferecida em Jesus Cristo, sem escamotear
a aposta de Pascal, a realidade se ilumina e a vida ganha consistência (EG 242).
A fé, mais do que conhecimento, é entendimento
que fundamenta o sentido e a verdade
que escolhemos para nossa vida[20].
Apresenta, isto sim, uma outra modalidade de se abordar a verdade, que não se
confine somente aos limites de certa razão, e menos ainda desta razão funcional
hoje dominante. Pois sendo Deus transcendente não pode ser alcançado por esta razão,
que o tornaria seu objeto, mas se faz presente, não na posse, mas na busca, no
anseio que brota do nosso próprio ser, no risco de nos confiarmos a Ele. No
fundo, a realização plena do ser humano está em sua liberdade que, criada por
outra Liberdade no amor, acolhe livremente este Amor infinito que se doa a ele
em Jesus Cristo. Ninguém encontra Deus no final de um silogismo, mas na entrega
da fé, que nos proporciona uma felicidade profunda “porque fomos criados para
aquilo que o Evangelho nos propõe” (EG 265).
Além disso a
razão humana entregue a si mesma pode conseguir estabelecer os princípios para
uma sadia convivência humana (Kant), para o que chamamos de um verdadeiro
humanismo. Mas não consegue mover as pessoas a lutar por este
humanismo. Pois trabalhar por uma sociedade mais humana, pelo bem comum, pelos
mais pobres, implica inevitavelmente renuncia aos próprios interesses egoístas
em vista do bem comum[21]. Argumentos
racionais ou arrazoados de cunho tecnológico não bastam para mobilizar os
cidadãos, sobretudo em nossos dias, quando imperam o individualismo e o
consumismo. Porque a política não se situa no campo da razão tecnológica, mas
no da razão moral, já que seu objetivo é a paz e a justiça[22]. Porém
a fé cristã oferece esta motivação. Porque ter fé significa ir mais além,
confiar numa realidade transcendente que chamamos Deus e assim libertar o ser
humano para que ultrapasse o círculo fechado do egocentrismo em direção aos
outros. A fé no Deus de Jesus Cristo, no Deus do Reino, nos descentra de nós
mesmos, nos sensibiliza para as carências do próximo e nos arrasta para a ação
capaz de remediá-las. Vejamos porquê.
Já que toda a
realidade foi criada em vista de Jesus Cristo (Cl 1,16) a humanidade de Cristo
precedeu e atuou como matriz de todo
o gênero humano, constituindo o ser humano querido
por Deus. Daí também João afirmar: “Esta era a luz verdadeira, que vindo ao
mundo ilumina todo homem” (Jo 1,9). Deste modo pode o Concílio Vaticano II asseverar
que “Cristo manifesta o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima
vocação” (GS 22)[23].
E esta revelação do que deva ser o homem se encontra na própria vida terrena do
Filho de Deus. Pois não só assumiu nossa natureza abstratamente falando, mas
mostrou ao longo de seus dias o que significa ser realmente humano. Uma existência humana que não pode ser
desvinculada de seu projeto de vida, que era o mesmo do Pai: fazer irromper na
humanidade o Reino de Deus, fazer a vontade do Pai, constituir novos laços
entre as pessoas de tal modo que se tornassem uma só família, a família de Deus
(Mt 12, 48-50). E isso ele pregou e realizou levando vida, ânimo, perdão,
sentido, numa palavra, amor a seus contemporâneos, sobretudo aos mais necessitados.
Nada recusou do que constituía o normal dos seres humanos, participando também
de seus momentos de lazer e de alegria, vendo na vida, na natureza, nos eventos,
o dom de Deus (Mt 6, 25-34).
Mais ainda. Ao
relegar a segundo plano as normas religiosas quando em choque com um ser humano
a ser assistido, Jesus desloca o lugar do sagrado
da esfera religiosa para o setor da vida cotidiana, humana, real. Como aparece
da parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37) ou do juízo final (Mt 25, 34-46).
No fundo, sagrado é o próprio ser humano e nossa salvação se decide no
comportamento que com ele tivermos. A própria visão dolorida do cristianismo,
tão forte no passado, na qual o sofrimento pelo sofrimento nos aproxima de
Deus, deve ser corrigida. O Deus de Jesus Cristo é Pai e nos ama, e de modo
algum quer que soframos. Os sofrimentos impingidos pelos homens aconteceram na
vida de Jesus e acontecem também em nossa vida enquanto surgem do choque entre a
vida cristã autêntica e a vida do mundo, enquanto a vida do cristão constitui
uma denúncia à existência dominada pelo egoísmo, vontade de poder e ânsia de
prazer.
Consequentemente
a humanização de Deus em Jesus Cristo transcende o simplesmente humano porque
supera e elimina qualquer elemento desumanizante[24].
E a experiência nos demonstra que o ser humano não consegue eliminar de sua
vida toda e qualquer realidade desumanizadora. Como afirma o papa Francisco:
“Chegamos a ser plenamente humanos, quando somos mais do que humanos, quando
permitimos a Deus que nos conduza para além de nós mesmos a fim de alcançarmos
o nosso ser mais verdadeiro” (EG 8). E deste
modo Jesus supera e transcende as limitações do meramente humano
manifestando-nos o humano em sua plenitude. O cristianismo nada rejeita do
humano, mas sim luta contra tudo o que desumaniza a pessoa. Por outro lado a
pessoa de Jesus ao transcender o meramente humano com suas limitações
desumanizantes, mistério inalcançável pelo ser humano, mostra aqui sua
transcendência, sua referência a Deus Pai, sua identidade divina de Filho de
Deus.
Portanto o
cuidado com seu semelhante, o amor fraterno verdadeiro, o compromisso pela vida
dos outros, a responsabilidade pela justiça e pela convivência social, a
preocupação com a felicidade alheia são expressões de um autêntico humanismo. Mas também são expressões do que deva ser o
verdadeiramente humano, já que Jesus, em tudo obediente ao Pai e, portanto,
realizando e manifestando em sua vida a vontade de Deus, manifestou em nossa
história este humanismo. Os que o assumem se acham associados ao mistério
pascal, configurados à morte de Cristo e fortificados pela esperança da
ressurreição (GS 22). Pois o fazer o bem implica conflito e sofrimento numa
humanidade marcada pela desumanização, pelo pecado. Mas o Espírito Santo move a
todos, mesmo os não cristãos, para se comprometerem nesta luta associando-os ao
mistério pascal de modo conhecido por Deus (GS 22). Por conseguinte, podemos
concluir que o humano autêntico é cristão
e que o cristão autêntico é humano.
Diante de uma
cultura desumanizante, marcada pelo culto à eficiência e à produtividade,
submissa ao dinheiro e ao consumismo, que considera a pessoa humana apenas como
uma peça substituível na engrenagem produtiva, a missão do cristianismo
consiste em humanizar esta sociedade, ajudando a pessoa humana a encontrar o
sentido de sua própria dignidade, de sua liberdade e de sua transcendência[25].
Nesta luta se encontra Deus[26],
um Deus cujo projeto do Reino é uma humanidade feliz, porque guiada pelo amor
fraterno e pela justiça. Tendo presente o que implica a salvação cristã segundo
os Evangelhos, pôde um teólogo afirmar: “quando trabalhamos pela humanização do
homem, trabalhamos pela salvação da humanidade”[27]. Entretanto
é importante não reduzir o cristianismo a uma ética humanizadora, pois assim
estaria se privando do próprio fundamento de suas ações.
B. A missão atual
O cristianismo
deve recuperar a novidade própria do
evento Jesus Cristo. Pois o inaudito de sua proclamação e o inédito de suas
ações acabaram no curso dos séculos soterradas por doutrinas, normas,
instituições que, procurando estar a serviço deste evento primeiro, terminaram
por ocultá-lo. Enunciados herméticos, representações infantis, inflação de
preceitos, pacote de certezas, afastam nossos contemporâneos da fé cristã. Pelo
contrário, que entusiasmo provoca a vida de Jesus quando devidamente
apresentada![28]
Talvez porque esta vida nos desconserte, e o Deus que nela se revela nos
surpreenda[29].
A ênfase numa experiência de um encontro pessoal com Jesus Cristo, suas ações e suas palavras, sempre a serviço do
Reino, do cuidado contínuo pelos mais pobres e sofridos, levando ânimo e vida a
todos, numa fidelidade coerente até a morte, representa, sem dúvida, uma força
evangelizadora de enorme significado. É só no encontro pessoal com Jesus de Nazaré que irá se desencadear um
sério compromisso com Deus e um empenho na realização de seu Reino neste mundo.
É só neste encontro que iremos estruturar diversamente nossa vida concreta, que
iremos experimentar uma identificação progressiva com Cristo, que iremos gozar
da liberdade, da paz e da vida que Ele nos oferece. Mas que seja o verdadeiro
Jesus Cristo comprometido com a causa do Reino e não um Jesus espiritualizado
ou simplesmente devocional. Observemos que esta experiência salvífica com Jesus
Cristo é fundamental para a transmissão da própria fé cristã. Pois o que se
lega a outra geração é a experiência de plenitude que fizemos, portanto uma
realidade viva e atual, porque presente e atuante em nossa vida. Transmitimos o
que somos, o que cremos (Dei Verbum 8).
O cristianismo
deveria também mudar seu olhar com
relação à atual sociedade que parece afastada de seus critérios e de sua
influência[30].
Não vê-la primeiramente como uma realidade que se emancipou de sua tutela e
deve outra vez ser conquistada para retornar à casa paterna. Sabemos que embora
seja caracterizada como secularizada, de fato, seus membros não o são, mesmo
apresentando religiosidades qualitativamente bem diversas. E não esqueçamos que
o Espírito Santo atua também naqueles que consideramos afastados do
cristianismo, já que muitos deles se mostram sensíveis aos sofrimentos alheios
e engajados na luta por diminui-los. Embora, muitas vezes, rejeitem o
cristianismo enquanto instituição social, vivem o seu núcleo e a sua verdade,
talvez melhor que muitos cristãos declarados. E dessa gente também podemos
aprender, se sabemos escutá-los, como se deu recentemente com a questão
ecológica.
De qualquer modo
esta atual sociedade abriga também em si muitas dúvidas, sofrimentos,
desorientações, injustiças, realidades estas às quais o Evangelho poderia
aportar luz, sentido e consolo. Mas é importante, diante dela, ter
primeiramente um olhar de compaixão e
não de censura e julgamento[31]. Assim
fazendo estaríamos mais consones com o Deus do Reino revelado por Jesus Cristo,
voltado para os pequenos e os últimos nos quais Ele se deixa encontrar. Naturalmente
este olhar autenticamente cristão implica sérias mudanças na teologia, na
espiritualidade, na Igreja e na cultura[32] O
papa Francisco cita Santo Tomás de Aquino que afirma ser a misericórdia a maior
de todas as virtudes e que é próprio de Deus usar de misericórdia (EG 37). Não
estaria aqui uma tarefa importante do cristianismo hoje, a saber, levar a
compaixão a este mundo ferido, sofrido, desunido, carente, inseguro,
angustiado, beirando a indiferença e o ceticismo[33]?
Além disso na sociedade também está agindo o Espírito de Deus e, portanto,
também ela deve ser escutada, também
ela pode nos ensinar[34].
Saber acolher e procurar entender o diferente antes de rejeitá-lo por não
entrar em nosso modo de pensar.
Já é um lugar
comum afirmar que a linguagem do
cristianismo não é sempre realmente entendida por nossos contemporâneos, e
mesmo pelos cristãos. Expressões nascidas em outras épocas nos aparecem hoje
como opacas e incompreensíveis. E aí estão elas, presentes na exposição
doutrinal e no culto litúrgico, pedindo traduções atualizadas que nos mantenham
unidos à grande tradição cristã. Naturalmente jamais poderemos enunciar pela
simples razão os mistérios cristãos, acessíveis à fé, mas nos perguntamos se a
ética cristã, numa versão ao alcance de todos numa sociedade pluralista, lhe daria
uma maior incidência na construção de uma sociedade mais humana[35]. Constatamos
também a rejeição de muitos quando proclamamos doutrinas, normas morais e
regras canônicas a serem seguidas impositivamente,
sem uma devida e necessária justificação. Naturalmente seriam mais facilmente
aceitas se aparece em toda clareza sua relação íntima com a mensagem evangélica
do Reino de Deus, com toda a sua atualidade e sua força humanizadora (EG 35).
E se temos
presente que a encarnação do Filho de Deus revela um Deus amor que se faz
pequeno e frágil, humilde e profundamente humano, para vir ao nosso encontro, para
resgatar-nos da degeneração, para libertar-nos do pecado e do egoísmo, para
possibilitar uma convivência humana feliz fundada no amor e na justiça, então aí
está a missão dos discípulos de Cristo.
O Evangelho humaniza profundamente o
ser humano, pois lhe indica sua identidade última: criado por um gesto gratuito
de Deus, sua existência só recebe o seu sentido verdadeiro quando prolonga este
mesmo gesto (amor, gratuidade) no relacionamento com seus semelhantes, tal como
nos atesta a vida de Jesus de Nazaré.
Se atualmente o
cristianismo perde poder e prestígio, já que não é mais o arcabouço e
fundamento da sociedade, não é motivo para lamentações, pois ele ganha
certamente a grande oportunidade de ser o que foi nos primeiros séculos,
pequeno e frágil do ponto de vista humano, mas forte e corajoso porque fundamentado em Deus. A opção pessoal de
fé se faz mais necessária numa época que derruba a fé apenas como dado
cultural, simples crença ou religião sem sério compromisso. A missão do
cristianismo deve visar a outro objetivo que não apenas de formação doutrinária
e práticas sacramentais. Urge acentuar a dimensão existencial, ética, mística da própria fé na prática que marcou a
vida de Jesus e que revelou o rosto de Deus. Conhecemos a Deus, não
teoricamente, mas moldando nossa vida pela de Cristo (1 Jo 4,8). Não significa
isto um exigente compromisso de vida com a humanização de uma sociedade que
sacrifica o ser humano aos imperativos da performance e às obrigações da
produtividade? Não se mostra assim o próprio cristianismo como uma realidade a
favor da felicidade do ser humano, da paz e da justiça na sociedade?[36]
Não concretiza mais fielmente na história o projeto do Reino de Deus? Não será
assim sua presença e atuação na sociedade menos atrelada ao poder e ao
prestígio e mais próxima ao Evangelho?
Agora podemos
entender a enorme importância do testemunho
cristão na atual sociedade. Pois ao viver sua fé no Deus do Reino ele
demonstra que Deus atua em sua vida, porque vive descentrado de si mesmo numa
cultura do individualismo egoísta e consumista. Seu exemplo intriga, interpela,
questiona, estimula, provoca outros a assumirem seus valores, sua fé, seu
sentido da existência. Com isso Deus se faz presente no mundo, sua graça se
mostra vitoriosa, seu Reino acontece. Quanto mais autêntico o testemunho, mais
forte sua irradiação, mais remete à força de Deus que o anima, mais aponta para
o Transcendente. Pois nesta pessoa Deus foi acolhido, Deus se faz presente,
Deus se manifesta[37].
Deste modo, ao contrário dos fautores de um humanismo fechado, o humanismo
autêntico remete ao Transcendente. E confere veracidade à verdade cristã e
credibilidade à fé[38].
“Pois a verdade de nosso discurso sobre Deus passa por nosso compromisso pelo
homem”[39].
Outra
consequência do que vimos diz respeito à própria pastoral demasiado presa à
transmissão de doutrinas, às normas morais e às práticas de culto. Ninguém
duvida de sua necessidade. Mas, dado o valor do testemunho em nossos dias, a
noção de atividade pastoral deveria ser aumentada, abrangendo também o dia a
dia concreto dos cristãos. Se todo cristão, por ser batizado, deve ser um missionário,
então isto já se dá através de sua vida concreta. Não podemos limitar esta
noção apenas às pastorais já organizadas e instituídas que, para muitos de
nossos contemporâneos, dizem menos do que o testemunho de vida. Naturalmente a
proclamação do querigma, que explica este testemunho, deverá vir num segundo
momento, pois devemos dar as razões da nossa própria esperança (1 Pd 3,15). O
núcleo do querigma entretanto deve exprimir “o amor salvífico de Deus como
prévio à obrigação moral e religiosa, que não imponha a verdade, mas faça apelo
à liberdade, que seja pautado pela alegria, o estímulo, a vitalidade” (EG 165).
E, sobretudo, que brote de uma vida de oração, espaço interior que ilumina e
fortalece a atividade pastoral (EG 262).
C. Mudanças que urgem
A presença e a
atuação do cristianismo na atual sociedade exigem certamente mudanças sérias,
tanto na mentalidade dos cristãos
quanto nas instituições do próprio
cristianismo. Mudar o modo de se olhar a realidade não nada fácil. Estamos já
habituados a certas práticas, convicções, representações da fé cristã que nos
foram legadas, nos proporcionam estabilidade e segurança e que não queremos
abandonar. Sem falar que tais mudanças podem significar, para alguns, perda de
poder, de prestígio, de comodismo. Também a fragilidade psicológica explica o
conservadorismo de outros. Daí a necessidade da conversão[40],
já proclamada por Jesus em sua vida (Mc 1,15), para que seus contemporâneos
pudessem acolher o Reino já presente. Esta necessidade não passou desapercebida
aos bispos na Assembleia Episcopal do CELAM em Aparecida. Mais difícil é
mudarmos nosso horizonte de compreensão
e nossa perspectiva de leitura que sempre condicionam nossa visão da realidade[41].
Sem falar que toda interpretação do próprio cristianismo estará sempre sujeita
à historicidade do conhecimento humano. Além desta conversão de cunho mais
intelectual devemos examinar se talvez nossas atitudes e decisões não brotam do
egoísmo, da vaidade, de vantagens e privilégios pessoais que não queremos
perder. A conversão moral exige de
nós deixarmo-nos guiar pelos critérios de valor e não de satisfação pessoal. A conversão cristã vai além, pois nos leva
a confiarmos plenamente em Deus, tendo-O como o único absoluto de nossas vidas
e de nossas decisões pela fé vivida, abrindo-nos às inspirações de seu Espírito
que age em nós. Através desta tríplice conversão alcançamos a necessária
liberdade de espírito para captar o que Deus pede de nós nesta hora presente.
Caso contrário, estaremos sempre resistindo a qualquer mudança que nos
desinstale do que nos é familiar e cômodo.
Se o núcleo de
nossa fé é a caridade, o cuidado com o outro, a sensibilidade pelos mais
sofridos, então o conhecimento doutrinal, as normas morais, o cumprimento de
preceitos, os atos de culto, devem lhe estar submetidos, pois deste núcleo
recebem seu sentido e sua razão de ser. Cada ato de amor fraterno significa o
Reino de Deus acontecendo, a vontade de Deus sendo realizada, o mundo se
tornando mais humano e cristão. De nada vale todo o resto se carecemos da
caridade, como nos ensina o apóstolo Paulo (1 Cor 13,1-3). Como já mencionamos
anteriormente, hoje evangelizamos de modo mais eficaz através do nosso
testemunho de vida.
Devemos também
tomar consciência que o cristão passivo de outras épocas foi uma verdadeira
aberração, se temos presente que o batismo nos incorpora ao Povo de Deus, cujo
sentido último é continuar na história a missão de Cristo, a implantação do
Reino. Cada leigo ou leiga cristão é um evangelizador,
em sua família, em seu ambiente de trabalho, entre seus amigos, nos locais que
frequenta. O contato pessoal se revela em nossos dias imprescindível para a
missão, pois parte da realidade concreta do outro, respeita as etapas de sua
evolução, acompanha seu progresso, evita o discurso universal que impõe metas
inalcançáveis pela pessoa naquele momento de sua vida (EG 171). Além disso é o
laicato que tem acesso a contextos vitais que os responsáveis e as autoridades
desconhecem. É ele que conhece a linguagem adequada a tais contextos para
tornar Deus presente nos mesmos.
Também devemos
nos converter a uma prática da fé mais “espiritual”, sabendo valorizar a ação
do Espírito Santo em nós. Mais do que
nossos conhecimentos teológicos, mais do que nossos planos pastorais, mais que
nossos cumprimentos de normas, deveríamos buscar mais seguir o Espírito que age
em nós e que nos familiariza com Deus. Devemos recuperar urgentemente a
dimensão mística da nossa fé cristã, experimentar que Deus está no íntimo de
nosso coração, embora o mundo o desconheça (Jo 14,17), aprender a discernir sua
ação em nosso interior e seguir seus impulsos. Faz-se mister experimentar
realmente que somos cristãos enquanto vivemos pelo Espírito e agimos segundo o
Espírito (Gl 5,25). Daí a necessidade de valorizarmos os momentos de oração em
nossa vida, de escuta da Palavra de Deus e do que através dela nos impele o
Espírito. De fato, a oração não é um acidente na vida do cristão, se este não quiser
reduzir sua fé apenas a práticas externas.
Também devemos
despir-nos de certa autossuficiência e consciência de superioridade diante da
sociedade, já que temos a verdade salvífica que nos fornece nossa fé. Se o
cristianismo é essencialmente um povo em missão, então devemos conhecer melhor
aqueles aos quais nos dirigimos. Pois também eles são atingidos pelo Espírito
de Deus e podem bem ter com que nos ensinar. Além disso é preciso que captemos
seus anseios, que percebamos suas angústias, que nos informemos de seus
questionamentos, se realmente queremos lhes oferecer a mensagem evangélica do
modo mais adequado e pertinente. Para tal é preciso saber escutá-los para aceder ao concreto de suas existências, a
seus valores vitais e às representações que apresentam do cristianismo.
Mas não basta
uma mudança no modo de pensar e consequentemente de agir. Pois vivemos sempre
no interior de instituições sociais
concretas que sem dúvida alguma condicionam nossas compreensões e nossos
juízos. Pois aparecem a nossos olhos como realidades objetivas, respeitadas
pelas gerações anteriores e fatores que influem e promovem uma determinada mentalidade.
Embora criações do ser humano acabam nele repercutindo. Portanto uma relação
dialética que deve ser seriamente considerada, para que uma nova mentalidade
não seja descartada sem mais por não se ajustar à instituição vigente.
A igual
dignidade de todos os batizados abre espaço para a comunhão de todos no mesmo
Espírito (2Cor 13,13), do qual todos recebem seus carismas a serem investidos
na realização do Reino de Deus. A comunhão
pressupõe mútua colaboração, mútua escuta, mútuo discernimento, mútua
participação entre os cristãos. De certo modo, todos são docentes e discentes.
Esta estrutura sinodal que corrige a
modalidade feudal estritamente hierarquizada, não suprime a existência e a
função das autoridades responsáveis no cristianismo e suas correspondentes
entidades. Mas impede, isto sim, um autoritarismo vertical que não mais se
coaduna com o espírito democrático que respiramos, mesmo reconhecendo a origem
divina dos ministérios. Naturalmente se impõe uma mudança de mentalidade nos
responsáveis pelas comunidades cristãs, que já deve ser incutida nos anos de
formação (EG 107). Deste modo, a configuração futura do cristianismo deverá
oferecer estruturas de participação que possibilitem a comunhão mútua, a
colaboração permanente, o compromisso de todos na missão. Numa sociedade tão
pluralista e tão complexa como a atual faz-se mister a participação ativa de
todos na missão comum. Seria bastante desejável um espaço público para debates
sobre temas relacionados com os desafios culturais postos pela sociedade.
Embora não em nome do cristianismo, mas enquanto cristãos, todos deveriam poder
expressar e fundamentar o que pensam.
A ausência de
uma estrutura de plausibilidade como lhe oferecia a sociedade na época da
cristandade expõe os cristãos à influência constante da atual mentalidade
hegemônica na sociedade, de cunho individualista e hedonista, que pode
danificar e enfraquecer a fé de muitos. Nesta situação é fundamental que os
cristãos constituam pequenas comunidades
de vida onde aprofundem a fé comum, debatam seus problemas, partilhem suas experiências,
recebam incentivos e sintam-se realmente como irmãos. A criação das comunidades
eclesiais de base, inaugurada na América Latina e já presente em outros países
e continentes, deveria ser mais valorizada, embora se moldando conforme o
contexto sociocultural onde se encontrem. Deste modo teremos um cristianismo
com menor visibilidade, mas de maior autenticidade.
Não vejo contradição nesta insistência no pessoal, no comunitário, no
experiencial, e o uso dos meios de comunicação social de cunho mais
informativo, visual e dotado de linguagem própria. É uma outra modalidade de
presença e de ação que não pode prescindir de uma autêntica vivência da fé.
O caráter
missionário intrínseco ao cristianismo, como já vimos, não só dará prioridade
ao projeto do Reino de Deus para a humanidade, mas também deverá enfatizar que
este compromisso nos possibilita um encontro autêntico com Deus[42],
uma experiência profunda e gratificante de Deus. A fé vivida já é um evento
salvífico, experimentado de certo modo por todo aquele que dele participa. Pois
acolhe o gesto de Deus em Jesus Cristo capacitado pela força do Espírito Santo.
Assim fazendo dá um novo sentido a sua vida, dando início a uma nova
existência. Não se trata só da aceitação formal da doutrina cristã, como
acontecia por vezes no passado, deixando em segundo plano o existencial da fé. Hoje há um anseio
geral por felicidade e auto realização traduzida no consumo constante de bens
materiais e de experiências gratificantes, que acaba geralmente em decepção. A
felicidade no serviço aos demais, o empenho por melhores condições de vida para
os mais pobres, o cuidado cotidiano com o próximo, traz um sentimento de
felicidade e de realização ao cristão que deveria ser mais enfatizado pelo
cristianismo em sua tarefa evangelizadora. Naturalmente a ênfase posta na
experiência de Deus aparece como um critério importante na renovação das
estruturas atualmente presentes nas comunidades cristãs e em sua ação pastoral.
[1]
F.X. KAUFMANN, A crise na Igreja. Como o
cristianismo sobrevive? Loyola, S. Paulo, 2013, p. 95: “O cristianismo deve
seu êxito histórico à capacidade de sempre interpretar a mensagem novamente à
luz das diversas culturas. (...) Num tempo de mudança constante, o cristianismo
também é desafiado a novas interpretações de sua mensagem e ao desenvolvimento
de formas contemporâneas de comunitarização. Mas ele não poderá cumprir sua
missão como adaptação, mas apenas em contemporaneidade
crítica”.
[2] J. A. KOMONCHAK, Modernity and the
Construction of Roman Catholicism”, Cristianesimo
nella Storia 18 (1997) p. 353-385.
[3]
Para o setor do ensino ver H. DERROITTE, “Cours de religion catholique et
pluralité religieuse”, Revue Théologique
de Louvain 41 (2010) p. 57-85.
[4]
Para uma fundamentação de cunho bíblico sobre o sentido do Reino de Deus que
adotamos, ver G. LOHFINK, Deus precisa da
Igreja? Teologia do povo de Deus, Loyola, S. Paulo, 2008.
[5]
G. LOHFINK, Jesus von Nazareth. Was er wollte, wer er war, Herder, Freiburg, 2011, p. 338; tradução em inglês: Jesus of Nazareth. What He Wanted, Who He
Was, Liturgical Press, Collegeville, 2012, p. 237.
[6]
J.M. CASTILLO, La humanización de Dios.
Ensayo de Cristología, Trotta, Madrid, 2009, p. 93-117.
[7] J.
MOINGT, Croire quando même,
TempsPrésent, Paris, 2010, p. 34-44.
[8]
J. ROLLET, “Religion et Foi”, em: J.DORÉ/Ch.THEOBALD (dir.), Penser la Foi. Mélanges offerts à
Joseph Moingt,
Cerf, Paris, 1993, p. 311.
[9] A. ROUET, L’étonnement de croire, Atelier, Paris, 2013, p. 168s.
[10]
Ver R. HAIGHT, Dinâmica da Teologia,
Paulinas, S. Paulo, 2004, p. 149-187.
[11]
“Deste modo, somos fiéis a uma formulação, mas não transmitimos a substância”
(EG 41).
[12]
L. DUPRÉ, L’autre dimension. Essai de
philosophie de la religion, Cerf, Paris, 1977, p. 126.
[13]
Ver M. FRANÇA MIRANDA, A Igreja que somos
nós, Paulinas, S. Paulo, 2013, p. 184-189.
[14]
Ch. TAYLOR, Uma Era Secular, Ed.
Unisinos, São Leopoldo, 2010, p. 633-696.
[15]
LUC FERRY, O Homem-Deus ou o sentido da
vida, Difel, Rio de Janeiro, 2012.
[16]
Experimentamos hoje a crise da razão da modernidade. Ver J.-L. MARION, “Foi et
raison”, Études nº 4202 (Février
2014) p. 67-76; do mesmo autor, Le croire
pour le voir, Parole et Silence, Paris, 2010, p. 17-29.
[17] FERRY,
p. 206.
[18]
Como bem observa J. MOINGT, Deus que vem
ao homem II, Loyola, S. Paulo, 2012, p. 455.
[19] FERRY, p. 202. Já dizia
Pascal: “l’homme passe infiniment l’homme” (Pensées
§ 131).
[20]
J. RATZINGER, Introdução ao Cristianismo,
Loyola, S. Paulo, 2005, p. 52-60.
[21]
P.VALADIER, Détresse du politique, force
du religieux, Seuil, Paris, 2007, p. 101-103.
[22] J. RATZINGER, Values in a Time of Upheaval, Ignatius Press, San Francisco, 2006,
p. 24.
[23]
Ver ainda JOÃO PAULO II, Fides et Ratio,
n. 60. Este texto foi o mais citado em todos os pronunciamentos deste papa. Ver
P. HÜNERMANN/B.J. HILBERATH (Hrsg.), Herders
Theologischer Kommentar zum Zweiten Vatikanischen Konzil 4, Herder,
Freiburg, 2009, p.740 nota 72.
[24]
J.M. CASTILLO, La humanización de Dios,
p. 199.
[25]
“Viver a fundo a realidade humana e inserir-se no coração dos desafios como
fermento de testemunho, em qualquer cultura, em qualquer cidade, melhora o
cristão e fecunda a cidade” (EG 75).
[26] “A presença de Deus acompanha a busca sincera
que indivíduos e grupos efetuam para encontrar apoio e sentido para a sua vida.
Ele vive entre os citadinos promovendo a solidariedade, a fraternidade, o
desejo de bem, de verdade, de justiça” (EG 71).
[27] J. MOINGT, Faire bouger l’Église catholique, Desclée de Brouwer, Paris, 2012, p.
131.
[28]
Como nos confirma a obra de J.A. PAGOLA, Jesus.
Aproximação histórica, Vozes, Petrópolis, 2010.
[29] A. ROUET, L’étonnement, p. 95s.
[30]
Para esta parte ver J. MOINGT, Deus que
vem ao homem II, p. 451-460.
[31]
“Muitas vezes agimos como controladores da graça e não como facilitadores. Mas
a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a
sua vida fatigosa” (EG 47). Ver ainda EG 114.
[32]
W. KASPER, Barmherzigkeit. Grundbegriff
des Evangeliums. Schlüssel christlichen Lebens, Herder, Freiburg, 2012.
[33]
“No mundo de hoje há inúmeros sinais da sede de Deus, do sentido último da
vida, ainda que muitas vezes expressos implícita ou negativamente” (EG 86).
[34]
“O mesmo Espírito suscita por toda parte diferentes formas de sabedoria prática
que ajudam a suportar as carências da vida e a viver com mais paz e harmonia.
Nós cristãos, podemos tirar proveito também desta riqueza consolidada ao longo
dos séculos, que nos pode ajudar a viver melhor as nossas próprias convicções” (EG
254).
[35]
Ver sobre esta questão M. FRANÇA MIRANDA, A
Igreja que somos nós, Loyola, S. Paulo, 2013, p. 82-84.
[36]
R. LEMIEUX, “Crise, christianisme et société contemporaine”, RSR 99 (2011) p. 347s.
[37]
E. BARBOTIN, Le témoignage spirituel,
Ed. de l’Épi, Paris, 1964.
[38] A. ROUET, L’étonnement, p. 76.
[39] A. ROUET, La chance d’um christianisme fragile, Bayard, Paris, 2001, p. 29.
[40]
Sobre esta temática ver o que escrevemos em A
Igreja que somos nós, p. 226-235.
[41]
“Cada um tem seu filtro que leva consigo por toda parte... Raros, muito raros,
são aqueles que verificam seus próprios filtros”, H. DE LUBAC, Nouveaux Paradoxes, Seuil, Paris, 1955,
p. 16.
[42]
J.M. CASTILLO, Espiritualidade para
insatisfeitos, Paulus, S. Paulo, 2012, p. 123: “A expressão ‘Reino de
Deus’, assim como é empregada pelos Evangelhos, é uma forma de dizer onde e como nós, seres humanos, podemos
encontrar a Deus”.
x-------------------------------------------000000000000000000000----------------------------------------x-- A HERANÇA INACIANA DE
FRANCISCO
Vivemos hoje uma época de rápidas e sucessivas transformações
socioculturais resultantes de várias causas. Sem pretender fazer um inventário
das mesmas experimentamos seus efeitos em nossa vida cotidiana, marcada pela
tensão, excesso de tarefas, instabilidade e insegurança. Este fato nos obriga a
rever tradições e valores que herdamos do passado e que não mais se ajustam aos
novos desafios que enfrentamos. Não adianta sonhar com o passado que
idealizamos sem perceber, pois temos que viver nessa sociedade hodierna com
suas luzes e suas sombras. Como cristãos procuramos pautar nossa conduta pela
mensagem evangélica, sem poder renunciar entretanto à nossa condição de membros
do atual contexto sociocultural. Enquanto pertencemos a um grupo social no
interior desta sociedade, a saber, à Igreja, vivemos a nossa adesão a Jesus
Cristo iluminada e orientada por esta mesma Igreja. Observamos, contudo, que
também a Igreja enquanto parte da sociedade se vê desafiada pelas mudanças e
busca responder a seus desafios. Pois só assim conseguirá se fazer entender e
ser acatada por seus membros, só assim será significativa e pertinente para a
própria sociedade.
Neste quadro podemos compreender a importância do Concílio
Vaticano II ao buscar diálogo com a sociedade e assim atualizar a Igreja. Seus
textos, cuja riqueza e profundidade ainda não foram devidamente valorizados,
ocasionaram mudanças, debates, interpretações, com ressonâncias significativas
para a vida eclesial. Certa turbulência no período pós-conciliar, como sempre
acontecera nos anos posteriores aos grandes Concílios, acabou ocasionando uma
centralização exagerada no governo da Igreja, um controle severo da reflexão
teológica e uma sucessão de pronunciamentos doutrinais do magistério
eclesiástico. Um clima de insatisfação pôde ser constatado entre os católicos
que não viam seus problemas e seus questionamentos serem acolhidos pelo
magistério, ocasionando a saída de muitos da Igreja ou simplesmente uma não
obediência silenciosa às prescrições do Vaticano, sobretudo em questões de
moral.
Com a eleição do papa Francisco sentimos que o clima mudou.
Sua figura simples e humilde, sua fala direta e clara, seus gestos proféticos,
seu programa de renovação eclesial, contagiaram não só os católicos mas grande
parte da população do planeta. A Igreja aparece desde então como mais
simpática, mais humana, mais confiável, atraindo de volta muitos egressos e
insatisfeitos. Como primeiro jesuíta a ser eleito papa em toda a história
muitos se interrogam sobre sua maneira de ser e de atuar, muitos buscam
conhecer as razões de sua conduta. Não só enquanto recupera a dimensão
profética do cristianismo, não só enquanto prega uma conversão de todos ao
Evangelho em sua simplicidade exigente, não só enquanto procura desfazer
mentalidades e estruturas de poder incrustadas no corpo eclesial, não só
enquanto demonstra grande sensibilidade pelos mais pobres e sofridos, mas,
sobretudo, enquanto ousa abrir o debate sobre temas que atingem em cheio a vida
da Igreja como a questão da comunhão para os recasados. Pretendemos aclarar
esta questão a partir da formação
espiritual recebida por Jorge Mario Bergoglio na Companhia de Jesus.
1. Uma espiritualidade
marcada pelo contínuo discernimento
Para entendermos as características que determinam a
atividade pastoral e a espiritualidade da Companhia de Jesus temos que remontar
a Inácio de Loyola. Realmente, ainda como leigo passou por uma forte
experiência de conversão através da qual aprendeu a captar e interpretar a ação
de Deus em seu íntimo, enquanto se dedicava a meditar os relatos do Evangelho e
as vidas dos santos. Daí nasceram os Exercícios
Espirituais que buscam transmitir a outros sua experiência original. Embora
vivendo num tempo conturbado por divisões confessionais e pelos inícios do que
viria a ser a modernidade, Inácio, na busca por critérios para a vida cristã,
evita os extremos de uma obediência mecânica e fideísta à autoridade eclesial
ou de uma autonomia total do sujeito em seu relacionamento com Deus. Sua
experiência pessoal comprova que Deus se serve da própria realidade humana para
agir em suas criaturas. Cabe portanto ao cristão saber captar e interpretar
esta ação divina ao longo de sua vida e nos eventos da história.
Este traço da espiritualidade inaciana implica, de um lado,
respeito à pessoa concreta, à subjetividade, como se diz hoje, e de outro, confiança
no Espírito Santo que trabalha no coração de cada um. A “eleição”, ou a
descoberta e a aceitação da vontade de Deus nos Exercícios Espirituais,
pressupõe uma cuidadosa triagem dos desejos, afeições, pulsões e tendências
presentes na pessoa. Conhecemo-la mais comumente como “discernimento dos
espíritos”, ou das moções interiores, que se realiza à luz das “regras para o
discernimento” deixadas por Inácio. Além disso Inácio não dispensa o cristão de
usar continuamente a inteligência: ele deve ter sempre presente sua realidade
concreta, seu contexto atual, as consequências de sua opção, pois esta jamais
se dá num vazio antropológico ou social.
Espiritualidade exigente que não aceita uma obediência
infantil à autoridade e nem submissão incondicional a princípios teóricos, os
quais podem desembocar numa intransigência desumana ou numa incapacidade
desesperada e trágica de vive-los realmente no presente. Espiritualidade que deixa
à pessoa a responsabilidade de buscar e achar continuamente a vontade de Deus ao
longo de sua trajetória histórica. Espiritualidade para adultos porque respeita
a liberdade individual. Espiritualidade que brota e se alimenta da ação do
Espírito, rejeitando qualquer modalidade de positivismo doutrinal ou jurídico.
Assim nas anotações prévias ao orientador dos Exercícios
Espirituais Santo Inácio recomenda que ele deve permitir ao exercitante
procurar e encontrar pessoalmente o
que Deus quer dele, sem influenciá-lo em sua escolha, deixando “imediatamente
agir o Criador com a criatura e a criatura com seu Criador e Senhor” (EE. 15).
Por outro lado dá grande importância à ação do Espírito Santo na pessoa,
indagando quando ela nada sente em vista de descobrir as razões desta lacuna (EE.
6) e se informando fielmente das várias agitações e pensamentos presentes na
pessoa (EE. 17). A matéria para a oração deve ser apresentada de modo breve e
simples, pois o que importa aqui não são as ideias, mas os sentimentos
espirituais: “pois não é o muito saber que sacia e satisfaz a pessoa, mas o
sentir e saborear as coisas internamente” (EE. 2). Para que o exercitante possa
pessoalmente interpretar o que se passa em seu íntimo deve o orientador do
retiro, se necessário, explicar-lhe as regras de discernimento dos espíritos
(EE. 8) apresentadas no livro dos Exercícios (EE. 313-336).
A maturidade espiritual pressupõe uma pessoa realmente livre. Neste sentido podemos afirmar que
a espiritualidade inaciana consiste numa pedagogia da liberdade. Inácio conduz
o exercitante a esta liberdade fazendo-o contemplar os mistérios da vida de
Jesus e capacitando-o a interpretar devidamente os mesmos através de meditações
típicas e originais: Reino de Deus, Duas Bandeiras, Três Tipos de Pessoas e
Três Modos de Humildade. Através delas a pessoa se livra das ilusões sobre o
autêntico seguimento de Cristo e sobre a verdadeira vontade de realiza-lo. Só
assim se torna um sujeito apto a perceber o que Deus dele quer, sem ser
enganado por suas ideias, aspirações e interesses, caracterizadas por Inácio
como “afeições desordenadas” (EE.172).
O respeito à liberdade pessoal, a importância dada à
experiência e à disponibilidade para o agir de Deus vão caracterizar também o modo de proceder de Inácio como Superior
Geral da ordem. Mesmo reconhecendo a necessidade de regras, ele só as promulga
depois das experiências positivas com as mesmas feitas pelos jesuítas das
várias partes do mundo. E mesmo assim considerava que as Constituições da
Companhia de Jesus não estavam encerradas “enquanto a experiência não mostrar
muitas coisas”, como expressava Polanco[1].
Também não queria regras muito minuciosas ou demasiado severas, deixando muitas
vezes o superior decidir sobre sua aplicação em cada caso, como aparece
frequentemente nas Constituições. Se Deus fala através dos acontecimentos e da
própria experiência é importante aprender da vida concreta e não querer impor
uma determinação teórica ou ideal, que não podendo ser cumprida, ocasionaria
mais mal do que bem.
Esta característica de Inácio vai marcar fortemente a
espiritualidade dos jesuítas. De um lado, deve apresentar em toda sua
radicalidade o ideal evangélico e as condições para realiza-lo na própria vida;
de outro, deve examinar cuidadosamente as condições
reais da pessoa para vive-lo, as circunstancias em que se encontra, os prós
e os contras da decisão a ser tomada, suas possíveis consequências. Não adianta
almejar uma meta muito alta, se uma percepção realista indica a impossibilidade
de alcança-la.
Daí a necessidade do discernimento
contínuo[2], que vale tanto
para o indivíduo, como para a própria ordem religiosa. Ele implica uma
obediência maior a Deus, senhor da história, do que o cumprimento de determinações
concretas, válidas em outras épocas, mas de pouco proveito posteriormente
devido às transformações socioculturais ou aos novos desafios eclesiais. O
“magis” inaciano se fundamenta não num ardor inexperiente, mas sim na abertura
à liberdade divina que não pode nem deve ser cerceada. Mas, por outro lado, ela
respeita os limites e os condicionamentos da pessoa humana, que é espírito num
corpo, que é indivíduo numa sociedade, que constrói sua identidade num processo
histórico gradual. Este modo de proceder
distingue a ação pastoral dos jesuítas, sua orientação espiritual e mesmo seu
desempenho como confessores. Numa palavra, leva em consideração a pessoa
concreta que têm diante de si, seus antecedentes, suas possibilidades, seus
limites, o passo que realmente pode dar. Sabemos que Inácio via o sacramento da
reconciliação como uma oportunidade de deixar as pessoas consoladas e
fortalecidas na fé.
2. Discernimento e vida cristã
Há no cristianismo uma característica de dinamismo, de
movimento, de caminhada, que lhe é
intrínseca, mesmo que não tenha sido tão valorizada em seu passado. A vida de
Jesus, suas ações e seus ensinamentos, se deram frequentemente durante suas
andanças pela Palestina a proclamar e mostrar presente em sua pessoa a
realidade do Reino de Deus. Seus primeiros discípulos, companheiros de
caminhada, experimentaram esta modalidade de vida e se fascinaram pela pessoa
de Jesus. O pouco tempo que passaram com o Mestre de Nazaré levou-os a encetar
a mesma caminhada, a aderir a este “caminho” (como então chamavam o
cristianismo) aberto por Jesus. Mesmo depois da ressurreição de Cristo e da
experiência dinamizadora da ação do Espírito Santo, mesmo em meio à sua missão
de propagar por toda parte o Reino de Deus manifestado em Jesus Cristo, eles
tinham consciência de sempre se encontrar como caminhantes que se dirigiam a
uma meta a ser alcançada. O testemunho de Paulo é significativo nesta questão,
pois reconhece que alcançado por Cristo, deve esquecer o que já conquistou e se
lançar para frente em direção à meta (Fl 3,13s). E conclui: “Entretanto, onde
quer que tenhamos chegado, caminhemos na mesma direção” (Fl 3, 16).
Assim ser cristão é caminhar na trilha aberta por Jesus, é
experimentar a vida de fé como uma realidade dinâmica, construída ao longo da
nossa história, sempre desafiada pela realidade circundante, sempre interpelada
por novos apelos de Deus, através da ação do Espírito Santo presente em nós,
que nos faz crescer na fé, amadurecer nosso compromisso com Cristo,
desinstalar-nos de nossos hábitos, abrir-nos aos inéditos desafios postos pela
história. Mas esta caminhada que constitui a nossa vida é realizada na
fragilidade da condição humana, na limitação imposta por nosso corpo e por
nossas experiências passadas, que tornam a caminhada um processo mais lento do
que desejaríamos e exige, de nossa parte, uma atitude de contínua vigilância e
conversão.
Se temos presente que a norma do agir moral no cristianismo
está no amor fraterno que comprova a veracidade do nosso amor a Deus como nos
ensina Jesus (Jo 13, 34s), Paulo (1Cor 13,1-13) e João (1Jo 4,20s), então ser
cristão é entrar numa aventura, pois
nunca sabemos quem estará diante de nós como nosso próximo, que opções
concretas pede de nós o Espírito em face das interpelações e apelos à nossa
liberdade enquanto seguidores de Cristo. As orientações e ensinamentos
destinados a todos os cristãos se, de um lado, devem ser observadas, de outro,
não determinam a decisão concreta a ser tomada, que diz respeito somente a mim,
e não aos outros. Além da ética essencial a ser obedecida, temos também uma
outra de cunho existencial, que me concerne como ser humano único que sou. Ética existencial ditada pelo Espírito
Santo que anima, ilumina, inspira, fortalece cada um de nós em nossa caminhada,
rompendo hábitos já sem vida, abrindo-nos para novas compreensões da fé,
estimulando-nos a caminhos não trilhados. O cristão jamais poderá ser apenas súdito
de doutrinas teóricas, e nem mesmo um escravo da lei, como já afirmou Paulo (Rm
7,10). Se Cristo nos libertou da lei e do pecado (Rm 7,18-20), foi para que
seguíssemos o Espírito: “Se vivemos do Espírito, andemos também segundo o
Espírito” (Gl 5,25).
Mas devemos ter também presente o importante ensinamento que
nos vem da Bíblia. De fato, a história da salvação nos demonstra que Deus age
na história sempre através de mediações
humanas. E como não existe o ser humano só e isolado, pois ele é e só pode
ser tal enquanto educado dentro de uma comunidade humana, dentro de uma
cultura, dentro de uma época histórica, que lhe fornecem linguagem, padrões de
comportamento e visões da realidade. Deste modo ele está inevitavelmente condicionado não só por suas limitações
pessoais, já que não é puro espírito, mas também pelo seu contexto
sociocultural. Teoricamente enquanto ser livre ele tudo pode, mas realmente sua
liberdade se vê condicionada por fatores internos e externos. Se por um lado
possibilitam seu exercício, por outro também o limitam. Somos seres históricos
que nunca conseguimos traduzir na vida o que desejamos em nosso coração. Nossa
caminhada no seguimento de Cristo constitui assim nossa própria história, a
história de nossa liberdade. Esta afirmação vale até para Jesus em sua
humanidade.
A Bíblia nos revela também um Deus ciente da nossa realidade
antropológica, paciente na longa tarefa de educar um Povo para si, servindo-se
de pessoas humanas para levar adiante seu plano de salvação da humanidade[3].
Não só paciente, mas misericordioso por conhecer-nos mais do que nós mesmos nos
conhecemos, por penetrar em nossos condicionamentos conscientes ou
inconscientes, por desvendar nossas lutas ou nossas rendições diante dos
desafios da vida. Portanto, Deus leva a sério a pessoa em sua situação
concreta, é compreensivo e acolhedor, sabe entender e perdoar, sem deixar de
estimular o crescimento moral da pessoa, de chama-la para sua responsabilidade
diante da vida que lhe foi presenteada e dos outros com os quais vive. E a
pessoa de Jesus leva à plenitude a revelação do rosto misericordioso de Deus.
“Felipe, quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9). O divino da pessoa de Jesus se
manifestou em seu comportamento profundamente humano, acolhedor, benevolente,
sensível aos mais sofridos, bem como em suas palavras que estimulavam seus
contemporâneos ao amor, ao perdão, à convivência pacífica, à partilha com os
mais pobres. Numa palavra, Jesus sempre respeitou a pessoa humana, incentivando-a
a crescer a partir de sua realidade concreta. Sabia bem que mais valia o
realizável possível do que o ideal inalcançável imposto[4].
3. Uma concepção da vida cristã
A compreensão cristã do ser humano valoriza tanto sua
inteligência quanto sua liberdade. Esta afirmação implica que seguir a Cristo
vá exigir o exercício tanto da reflexão
quanto da liberdade. A busca sincera
da verdade e o esforço contínuo em optar na linha do Evangelho acompanham o
cristão por toda a sua vida. Podemos mesmo afirmar que ele constrói sua
personalidade através de sua própria história por meio de suas opções morais,
que fundamentam e autentificam sua resposta à oferta salvífica de Deus em Jesus
Cristo. Sua identidade cristã real é
construída assim ao longo de sua própria história. Cada momento da mesma o
encontra inserido numa realidade complexa, cujos componentes jamais aparecem em
toda sua clareza e totalidade, como irão lhe comprovar as sucessivas
retrospectivas e releituras efetuadas no curso de sua vida. Assim, embora
marcado por seu passado, ele tem sempre diante de si a abertura de um futuro.
Sua decisão deve sempre estar pronta para uma revisão, desde que seja olhada
com maior lucidez ou que novos elementos surgidos posteriormente a exijam.
Deste modo a vida do cristão se assemelha mais a uma caminhada em direção a uma meta jamais
plenamente alcançada, um aproximar-se gradual do ideal expresso no sermão da
montanha, em meio a percepções somente parciais do ideal cristão, a afeições
desordenadas que as falseiam, a ilusões que somente o tempo irá dissipar, a
submissões indevidas ao contexto humano e cultural. A maturidade cristã
realmente resulta de um processo histórico, com idas e vindas, com momentos de
graça e de pecado, que nos ajudam sobremaneira a sermos compreensivos com os
outros em suas limitações. Não esqueçamos que o Deus dos cristãos não é apenas
o Deus da lei, mas o Deus misericordioso que nos acompanha ao longo de nossa
existência, que nos conhece melhor do que nos conhecemos, que nos criou para
vivermos com Ele uma eternidade feliz. Ele não quer uma obediência servil, mas
uma adesão consciente e adulta que brote de nosso coração.
Assim como estamos às voltas com encruzilhadas sucessivas em
nossa vida que nos exigem tomadas de posição contínuas, assim também, devido à
complexidade do entorno e de nós mesmos, somos compelidos ao exercício da
reflexão em nossa vida cristã. Pois ela sempre contém uma realidade objetiva
(ideal evangélico) e outra subjetiva que somos nós mesmos. Querer evitar a
tensão destes dois polos presentes numa decisão moral significa preguiça
mental, renunciar a uma necessária reflexão, por eliminar um dos polos em
questão. Assim tanto a vertente rigorista que defende uma submissão infantil
diante da norma teórica ou de um pronunciamento da autoridade, quanto a
vertente laxista que erige o indivíduo como único critério de seu agir, pecam
por falta de reflexão. Tanto um como outro podem denotar medo da liberdade,
medo da opção pessoal, arriscada, histórica, humana. Aqui entra a razão prática
como já ensinava Aristóteles. A vida moral procede por ajustamentos sucessivos,
e não por uma aplicação fria de uma verdade teórica prévia ou por uma
consciência pessoal autônoma.
Portanto o cristão vive numa atitude de constante discernimento moral que é também espiritual, porque deve
sempre examinar o que quer dele Deus na várias etapas de sua vida. Renunciar a
esta reflexão sobre si mesmo, com seus condicionamentos e limitações, pode
leva-lo a desastres funestos por falta de autoconhecimento, gerando desanimo,
ceticismo ou impotência diante do que avaliou superficialmente como objetivo a
seu alcance. A escuta e a obediência ao Espírito Santo não dispensam o
discernimento do que nos está movendo, pois motivações egoístas podem nos levar
a opções que parecem boas, mas não o são[5].
Devemos então nos perguntar: quando quero algo, o que quero de fato? Quando me
conformo ou resisto a alguma prescrição vinda da autoridade, por que estou
agindo deste modo? Qual é minha intenção nesta questão? Estou realmente seguro
dela? Tempo de reflexão, tempo de discernimento, tempo de chegar à liberdade
que nos trouxe Jesus Cristo (Gl 5,1).
Esta etapa da reflexão que procura levar em consideração
lealmente e na medida do possível os componentes presentes em minha decisão
moral nada tem de laxismo ou de minimalismo, como já foi imputado aos jesuítas,
sobretudo na querela com Pascal e os jansenistas[6].
Pois ela respeita o sujeito da decisão moral em toda a sua complexidade e,
igualmente, considera seriamente a norma teórica que lhe é dirigida. A execução
cega de uma diretiva em si boa pode levar a grandes males, o bem realizado pode
implicar consequências desastrosas, seja no âmbito da moral social como no da
moral pessoal. E nem sempre no passado, mesmo mais recente, o magistério da
Igreja soube dar a este ponto a devida consideração: contraceptivos e situação
real do casal ou uso de preservativos e propagação da aids. Chama a atenção o
cuidado que demonstra o magistério eclesiástico com a sociedade e suas
transformações no que diz respeito à moral social, e seu diverso modo de agir
no âmbito da moral sexual, ao se ater a normas gerais sem considerar
devidamente a situação real da pessoa[7].
Naturalmente deve ser reconhecido que falta à maioria dos cristãos uma formação
adequada para este discernimento moral, sendo muitos deles presas fáceis do
espírito do mundo marcado pelo hedonismo e pelo individualismo reinantes na
atual sociedade.
4. O modo de proceder
do papa Francisco
Jorge Mario Bergoglio recebeu uma Igreja desafiada não só
pelas rápidas transformações socioculturais, mas ainda agitada por uma crise
interna que danificava sua autoridade moral e sua irradiação evangelizadora. O
período pós-conciliar trouxe avanços pastorais e renovações necessárias, mas
também experimentou um processo de centralização institucional[8]
e de rigidez no âmbito da moral[9],
que refletia a preocupação das autoridades eclesiásticas com certo relativismo
reinante na sociedade, na intenção de fazer voltar à ordem aquela época
turbulenta. Hoje podemos constatar que esta política imposta sem que as Igrejas
Locais e a sociedade fossem devidamente escutadas não trouxe tão bons
resultados. Pelo contrário, distanciou a Cúria Romana do episcopado e dos
fiéis, levou muitos a se afastarem das práticas religiosas, projetou uma imagem
autoritária e intransigente da Igreja, desautorizou algumas tentativas
fundamentadas de resolver certas questões urgentes[10].
Sabemos que esta situação crítica se viu agravada pelos escândalos de pedofilia
e de transgressões financeiras.
A eleição de Jorge Mario Bergoglio foi uma clara indicação do
colégio cardinalício em favor de uma reforma
na instituição eclesial. Sem dúvida alguma Francisco tem diante de si um enorme
desafio. E o tem enfrentado com prudência, mas também com firmeza. Não
pretendemos aqui oferecer uma visão ampla e menos ainda exaustiva de sua
atuação como pastor supremo da Igreja. Apenas uma leitura limitada de suas
Exortações Apostólicas “A Alegria do Evangelho” e “A Alegria do amor” na
perspectiva de sua espiritualidade inaciana. Limitada ainda por ser uma leitura
pessoal, portanto a ser completada por outras igualmente possíveis. Restringimos
nosso estudo a estas Exortações, sendo a primeira um texto programático (25)[11]
que pretende “indicar caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos”
(1).
5. A missão de
evangelizar
Por outro lado, enquanto texto pós-sinodal sobre A nova evangelização para a transmissão da
fé cristã (14), o tema da missão evangelizadora da Igreja estará
continuamente subjacente a toda a Exortação Apostólica. De fato, este objetivo
é afirmado explicitamente: “a ação missionária é o paradigma de toda a obra da Igreja” (15). Mais concretamente
Francisco expressa esta finalidade com um teor tipicamente inaciano:
“evangelizamos para a maior glória do Pai que nos ama” (267). Trata-se,
portanto, de transmitir a outros a experiência salvífica de sermos amados por
Deus, ou “a beleza do amor salvífíco de
Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado” (36). Esta
finalidade, para Inácio de Loyola, exige uma reta intenção que busque “em todas
as coisas a Deus Nosso Senhor” (Const. 288), critério este de que se servirá o
papa para desmascarar objetivos espúrios nas ações apostólicas que tanto
prejudicam a Igreja, como aparece posteriormente no texto.
Hoje nós diríamos que a autocomunicação de Deus à humanidade,
totalmente gratuita e incondicionada, abarca tanto a criação como a salvação e
demonstra que tudo resulta de um gesto de amor de Deus. Somos um dom de Deus!
Este amor do Pai nos acompanha sempre e é a fonte da alegria que deve estar
sempre presente na vida do cristão evangelizador (10). Poderíamos também
expressar o imperativo da evangelização a partir do Reino de Deus a ser
implantado ao longo da história. Como nos mostra a Bíblia, Deus se serve de
pessoas humanas para levar adiante seu desígnio salvífico. Portanto, cabe a
cada cristão levar adiante este projeto divino no seguimento de Jesus Cristo.
Deus conta conosco, já que somos, como cristãos e membros da Igreja, discípulos missionários. Para Inácio,
numa época de cristandade, era a finalidade da vida do jesuíta, a saber, cuidar
da salvação e perfeição própria e alheia (Const. 3). Hoje temos consciência de
que este objetivo compete a todo cristão, a todo membro da Igreja, pois a
evangelização é a razão de ser desta mesma Igreja, como sacramento da salvação
de Deus.
A experiência de Deus
é fundamental para a espiritualidade inaciana, como vimos. Ela desencadeia um
processo de conversão que contempla diversamente a realidade e motiva novas
ações em nossa vida. Experiência do amor de Deus revelado por Jesus Cristo que
nos incita a comunicar a outros o que sentimos e vivemos. “O que vimos e
ouvimos, isso anunciamos” (1Jo 1,3). O evangelizador deve conhecer Jesus por
experiência própria, deve caminhar com Ele, escutá-lO, construir o mundo com
seu Evangelho (266). Para tal é necessário encontrar Jesus Cristo na oração, na
contemplação, no contato com a Palavra de Deus (264). Pois, “não pode haver
verdadeira evangelização sem o anúncio
explícito de Jesus como Senhor” que detém a primazia em qualquer trabalho
de evangelização (110).
6. A tensão entre
palavra e vida
Sabemos que a realidade é captada, entendida e expressa
através de nossas ideias e discursos.
Esta afirmação vale também para o setor da religião com suas doutrinas,
suas teorias, suas celebrações, suas normas, que procuram traduzir em conceitos
e imagens a realidade vivida pelo fiel. Aqui entra a tentação enganosa de
apoderar-se do discurso sem viver de fato o que ele implica. Já Jesus censurava
os fariseus por não viverem o que pregavam (Mt 23,1-3) e João exige que o amor fraterno
se comprove “com obras e em verdade” (1Jo 3,17s). Santo Inácio também se mostra
realista nesta questão: “o amor consiste mais em obras do que em palavras” (EE.
230). Não nos admira encontrar a mesma ênfase bem explícita em Francisco: “a
realidade é superior à ideia” (233). Francisco fundamenta sua afirmação pela
encarnação da Palavra que deve sempre estar a se encarnar para realizar a ação
salvífica de Deus ao longo da história, como nos demonstram as vidas dos
santos. “Não pôr em prática, não levar à realidade a Palavra é construir sobre
a areia” (233). Ou assumir várias formas de ocultar a realidade como “os
nominalismos declaracionistas, os projetos mais formais que reais, os
fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos
sem sabedoria” (231).
Daqui se compreende que o papa Francisco insista num seguimento real de Jesus Cristo que se
concretiza no amor fraterno e que exige um descentrar-se contínuo de si mesmo,
uma renúncia aos próprios interesses e comodismos, um voltar-se decidido para o
outro (161). E cita Santo Tomás de Aquino para quem o elemento principal da
Nova Lei é a graça do Espírito Santo, que se manifesta através da fé que opera
pelo amor (37). De fato, “o Evangelho convida, antes de tudo, a responder a
Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos para
procurar o bem de todos”. “Todas as virtudes estão ao serviço desta resposta de
amor”, sem este convite “não estaremos propriamente a anunciar o Evangelho, mas
algumas acentuações doutrinais ou morais” (39).
Um cristão individualista soa tão falso quanto um egoísta
piedoso, voltado para “um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro”
(89), pois “o Evangelho nos convida sempre a abraçar o risco do encontro com o
rosto do outro, com a sua presença física que interpela, com os seus
sofrimentos e suas reivindicações”. E deixa bem claro: “A verdadeira fé no
Filho de Deus feito carne é inseparável do dom de si mesmo” (88). E reforça sua
exortação ao exclamar: “Como seria bom, salutar, libertador, esperançoso, se
pudéssemos trilhar este caminho! Sair de si mesmo para se unir aos outros faz
bem” (87). E ainda insiste: “O amor às pessoas é uma força espiritual que
favorece o encontro em plenitude com Deus”, de tal modo que “só pode ser
missionário quem se sente bem procurando o bem do próximo” (272).
7. O discernimento
espiritual
Diante da amplidão aberta pelo imperativo do amor fraterno
recorre o nosso papa ao discernimento espiritual para verificar o que realmente
Deus quer da pessoa em suas limitações e condicionamentos. Portanto, uma
caridade discernida (caritas discreta), como aprendeu em sua formação na
Companhia de Jesus. Diante dos inúmeros desafios atuais o papa situa sua
Exortação Apostólica A Alegria do
Evangelho “na linha de um discernimento
evangélico” (50). Se todos nós como cristãos somos chamados para
evangelizar, então “cada cristão e cada comunidade há de discernir qual é o
caminho que o Senhor lhe pede” (20). Até a preparação da pregação, desde que se
procure considerar os acontecimentos, as circunstâncias e o povo concreto “se
transforma num exercício de discernimento evangélico” (154). Igualmente devemos
estar conscientes na leitura da Palavra de Deus que “também Satanás se disfarça
em anjo de luz” (2Cor 11,14), levando-nos “a usar o sagrado em proveito próprio
e passar esta confusão para o povo de Deus” (152).
Na tradição inaciana o discernimento se realiza quando
procuramos captar as moções do Espírito em nós. Para tal é necessário termos
chegado a um grau de liberdade espiritual que nos capacite a interpretar
corretamente o que Deus quer de nós. No fundo é um exercício de fé, de
deixar-se guiar pelo Espírito, já que toda nossa vida cristã depende de sua
ação que plasma em nós a imagem de Cristo. Também a atividade evangelizadora
nasce de “uma moção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação
pessoal e comunitária” (261). Ela requer grande confiança, pois não sabemos
onde podemos ser levados, como já experimentou o próprio papa ao afirmar que
“não há maior liberdade do que a de se deixar conduzir pelo Espírito,
renunciando a calcular e controlar tudo”, pois “o Espírito Santo bem sabe o que
faz falta em cada época e em cada momento” (280).
Portanto, diante de uma prática religiosa que se arvora como
cristã, mas que não é realmente evangélica, o texto realiza um autêntico discernimento espiritual. E de maneira
bem corajosa e direta. “O mundanismo espiritual, que se esconde por detrás de
aparências de religiosidade e até mesmo de amor à Igreja, é buscar, em vez da
glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal” (93). Apresenta-se
numa “fé fechada no subjetivismo” ou em um “neopelagianismo autorreferencial”
que se arvora instância julgadora dos demais (94), num exibicionismo litúrgico,
numa busca de poder e de realização pessoal, numa concepção empresarial da
Igreja (95). Estamos às voltas com “mestres espirituais e peritos de pastoral
que dão instruções ficando de fora” (96), que desqualificam os questionamentos
proféticos, enfatizam os erros alheios, vivem obcecados pela aparência,
“aparência religiosa vazia de Deus”. O invólucro religioso não brota da fé
cristã, “é uma tremenda corrupção, com aparências de bem” (97).
8. O respeito ao ser
humano em sua realidade
Como vimos anteriormente o discernimento contínuo na vida do
cristão denota uma concepção dinâmica da
fé vivida, que caracterizamos como caminhada rumo ao Pai. Ela implica uma
atenção especial à base antropológica das verdades reveladas, como vemos hoje
na teologia, que está atenta aos contextos, às situações vitais, aos entornos
culturais, aos desafios concretos enfrentados pela pessoa. Sem dúvida esta
preocupação está subjacente aos textos do Concílio Vaticano II, sobretudo na
Constituição Pastoral Gaudium et Spes.
Trata-se do respeito pelo ser humano em sua realidade concreta, que também
caracterizava o governo de Inácio de Loyola, e que aflora nas Exortações Apostólicas
em questão de modo explícito.
Vejamos o que afirmamos na A Alegria do Evangelho. Primeiramente, recuperando uma
característica fundamental do Concílio Vaticano II, a saber, o seu enfoque pastoral, o papa descarta a
evangelização como a imposição de pacotes doutrinais ou morais por parte das
autoridades eclesiásticas “que tentam se impor a força de insistir” (35), espera
“que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção,
nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos
sentimos tranquilos” (49), aponta desequilíbrios no predomínio da administração
sobre a pastoral ou da sacramentalização sobre a evangelização (63), deseja que
tudo na Igreja se torne “um canal proporcionado mais à evangelização do mundo
atual que à autopreservação” (27). Na fidelidade ao relato evangélico sobre as
andanças de Jesus na Palestina o papa Francisco afirma: “prefiro uma Igreja
acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja
enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças”
(49). Com outras palavras, “a intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade
itinerante” (23), que “entra na vida diária dos outros”, que sente o “cheiro de
ovelha” (24). Portanto uma Igreja que toma a iniciativa, que se envolve, que
acompanha, que frutifica e festeja à semelhança do Mestre de Nazaré (24).
Outro ponto destacado pelo papa Francisco que respeita o
ouvinte da Palavra em sua realidade e que constitui também um dos componentes
importantes de um discernimento espiritual é o tempo, a duração. Já nos atesta isto a própria Bíblia na lenta
educação de um povo por Deus em vista de seu desígnio salvífico. A imagem de
uma caminhada da Igreja através da história é enfatizada no texto. O ser humano
vive sempre numa tensão contínua entre plenitude e limite, entre o horizonte
que se abre e o momento presente que nos circunscreve. Ao considerar “o tempo
superior ao espaço” (222) o papa Francisco assume “a tensão entre plenitude e
limite, dando prioridade ao tempo” e “dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços”, privilegiando “as ações
que geram novos dinamismos na sociedade e comprometem outras pessoas e grupos”
(223). Assim na evangelização se deve ter presente o horizonte, e ‘adotar os
processos possíveis e a estrada longa” (225). Subjacente a todas as páginas
deste documento está a convicção de que a caminhada eclesial não pode seguir
alheia às vicissitudes concretas que
encontra ao longo do caminho, e portanto está sempre necessitada de um
discernimento espiritual que lhe proporcione a liberdade do Espírito e a oriente
em suas opções.
Considerar seriamente a pessoa humana em sua história
concreta, sabendo que também para ela o tempo é um fator importante de
amadurecimento e de crescimento espiritual, implica uma visão dinâmica da vida
cristã, como Paulo a apresentava às suas comunidades como “um caminho de
crescimento no amor” (161). Nas palavras de Francisco: “Deus convida sempre a
dar um passo a mais, mas não exige uma resposta completa, se ainda não
percorremos o caminho que a torna possível”, mas quer “que estejamos dispostos
a continuar a crescer, e peçamos a Ele o que ainda não podemos conseguir”
(153). Consequentemente na iniciação mistagógica deve ser respeitada “a
necessária progressividade da experiência formativa na qual intervém toda a
comunidade” (166). E no processo de acompanhamento espiritual se impõe um “modo
de proceder onde reinem a prudência, a capacidade de compreensão, a arte de
esperar, a docilidade ao Espírito” para que sejam identificadas e enfraquecidas
as “inclinações contrárias” que persistem, condicionamentos que dificultam o
exercício das virtudes. Daí urge “dar tempo ao tempo” e considerar como São
Pedro Fabro que o tempo é o mensageiro de Deus (171).
Respeitar o tempo de maturação espiritual condiz diretamente
com um Deus cuja misericórdia é
infinita e que deveria aparecer mais no rosto da Igreja. Como nos ensina uma
citação de Santo Tomás de Aquino presente no documento: “é próprio de Deus usar
de misericórdia e é, sobretudo nisto, que se manifesta a sua onipotência” (37).
Neste sentido o papa cita um texto do Catecismo
da Igreja Católica (nº. 1735): “A imputabilidade e a responsabilidade de um
ato podem ser diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, inadvertência,
violência, medo, hábitos, afeições desordenadas e outros fatores psíquicos ou
sociais” (44). E conclui: “portanto, sem diminuir o valor do ideal evangélico,
é preciso acompanhar com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de
crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia”. Consequentemente,
“o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da
misericórdia do Senhor” (44).
A preocupação em evitar juízos universais sem ter em conta a
situação real das pessoas volta claramente na Exortação Apostólica A Alegria do Amor. Ao afirmar ser o
caminho de Jesus o da misericórdia e o da integração, o papa declara que “é
preciso evitar juízos que não levam em consideração a complexidade das diversas
situações e é necessário prestar atenção ao modo como as pessoas vivem e sofrem
por causa de sua condição” (296). Assim ao abordar as assim chamadas “situações
irregulares” na vida matrimonial, Francisco indica primeiramente o “diálogo
pastoral” em vista de um melhor conhecimento das mesmas (293), que possibilite
também “lhes revelar a pedagogia divina da graça em suas vidas e ajuda-las a
alcançar a plenitude do desígnio que Deus tem para elas” (297). Pois a ausência
do matrimonio religioso pode ser atribuída a diferentes causas, culturais ou
econômicas, que devem ser acolhidas e acompanhadas “com paciência e delicadeza”
(294). O papa assume a chamada “lei da gradualidade” proposta por João Paulo
II, ao reconhecer que o ser humano conhece e vive sua vida moral passando por
diversas etapas de compreensão e de capacidade de realizar o que pede as
exigências objetivas da lei (295).
O papa cita casos de divorciados em segunda união que se
encontram em situações muito diferentes, seja por não poderem mais voltar atrás
sem graves consequências, seja por estarem convencidos em consciência da nulidade
do primeiro casamento, situações que nada tem a ver com casos de separações
repetidas (298). Daí reconhecer que “o grau de responsabilidade não é igual em
todos os casos” (300). Portanto, “já não é possível dizer que todos os que
estão em uma situação chamada ‘irregular’ vivem em estado de pecado mortal,
privados da graça santificante” (301). Observa ainda que o Catecismo da Igreja Católica afirma que “a imputabilidade e
responsabilidade de um ato podem ser diminuídas e até anuladas, pela
ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições
desordenadas e outros fatores psíquicos e sociais” (302). E termina afirmando
que, devido aos condicionamentos presentes, uma pessoa pode estar numa situação
objetiva de pecado, mas vivendo na graça de Deus, podendo assim crescer na vida
de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja (305). Toda esta
argumentação não significa cair num laxismo ou num relativismo moral, pois “a
compreensão pelas situações excepcionais não implica jamais esconder a luz do
ideal mais pleno, nem propor menos do que Jesus oferece ao ser humano” (307).
Em todas estas linhas esteve presente e atuante a atenção do
papa ao ser humano em seu contexto vital bem concreto, bem como à necessidade
de um autêntico discernimento pastoral em cada caso. Aqui se comprova ser
Francisco um autêntico herdeiro de Santo Inácio de Loyola, seu mestre
espiritual!
[1] A. RAVIER, Inácio de Loyola funda a Companhia de Jesus,
Loyola, S. Paulo, 1982, p. 234.
[2]
Perguntado sobre que ponto da espiritualidade inaciana o ajuda melhor a viver o
seu ministério o papa Francisco respondeu: o discernimento. Ver A. SPADARO, Entrevista exclusiva do Papa Francisco, S.
Paulo, Paulus/Loyola, 2013, p. 10.
[3]
Como confirma a valiosa obra de G. LOHFINK, Deus
precisa da Igreja? Teologia do povo de Deus, Loyola, S. Paulo, 2008.
[4] “Para Santo Inácio, os
grandes princípios devem ser encarnados nas circunstâncias de lugar, de tempo e
de pessoas”, como observa o papa Francisco a A. SPADARO, ob. cit., p. 10.
[5] P. VALADIER, La part des choses. Compromis
et intransigeance, Paris, Lethielleux, 2010, p. 167-208.
[6]
Ver P. VALADIER, Rigorisme contre liberté
morale. Les Provinciales: actualité d’une polemique antijésuite, Bruxelles,
Lessius, 2013.
[7] J.-Y. CALVEZ, “Morale
sociale et morale sexuelle”, Études (1993),
p. 641-650.
[8]
De uma extensa bibliografia citaremos apenas pela qualidade da pesquisa: H.
LEGRAND, “Les évêques, les églises locales et l’église entière. Evolutions institutionelles depuis
Vatican II et chantiers actuels de recherche”, Rev. Sc. Ph. Th. 85 (2001) p. 461-509.
[9]
Ver A. THOMASSET, “Dans la fidelité au Concile Vatican II. La dimension
herméneutique de la théologie morale”, Revue
d’Éthique et de Théologie Morale, nº 263 (2011) p. 31-61.
[10]
Como exemplo: Carta Pastoral dos Bispos
Alemães do Reno Superior sobre divorciados recasados, de autoria de O.
SAIER, K. LEHMANN e W. KASPER, em: SEDOC 26 (1994) p. 423-438.
[11] Os números entre
parêntesis se referem todos à Exortação Apostólica.
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CONCLUSÃO
Certamente não esgotamos toda a riqueza presente na
reforma empreendida pelo papa Francisco. Algumas questões importantes já podem
ser captadas em seus pronunciamentos, explicitamente mencionadas ou brevemente
aludidas, como uma maior participação de todos no governo da Igreja, outra
formação do clero mais condizente com a sociedade atual, um reconhecimento
maior da mulher na Igreja, uma liturgia mais próxima à vida de seus
participantes, uma Igreja mais inclusiva em relação às demais Igrejas cristãs,
às outras religiões, aos sem religião e a todos os que lutam por uma humanidade
mais fraterna e justa, uma ética que enfatize a maior gravidade dos pecados que
geram injustiças sociais, fome, guerras assassinas, marginalização, enfim uma
Igreja que cultive mais a sobriedade em todos os seus escalões com uma
hierarquia consciente de ser instância de serviço e não de poder.
Importante aqui é saber que tais
reformas não são frutos de medidas arbitrárias ou pessoais deste papa. Pois
vivemos, e já temos suficiente consciência deste fato, uma mudança de época na história
da humanidade, sem dúvida mais acelerada do que gostaríamos, a qual acaba por
repercutir no interior da própria Igreja. E que exige dela que, sem perder sua
identidade, corresponda à sua missão de proclamar e testemunhar para seus
contemporâneos a mensagem evangélica, presente nas palavras e nas ações de
Jesus Cristo. Sua história de mais de dois mil anos demonstra como ela soube se
configurar à realidade sociocultural das diversas gerações. Entretanto no
imaginário católico de muitos persiste ainda a Igreja do tempo da cristandade,
no qual ela era a instância reguladora hegemônica na sociedade gozando do
correspondente prestígio e poder. Daí certa visão pessimista e crítica das
mudanças em curso.
Mas os fatos aí estão. Vivemos
hoje numa sociedade pluralista, tolerante, secularizada, democrática que, por
si só, já constitui um desafio para uma Igreja ainda demasiadamente
hierarquizada e vertical, apesar de toda a renovação trazida pelo Concílio
Vaticano II. Em alguns países da Europa constata-se uma indiferença religiosa,
uma ausência de Deus na vida das pessoas sem que tal fato constitua um
problema. Esta situação se vê agravada por uma cultura que incita ao consumismo
e promove o individualismo, enfraquecendo as relações humanas e a própria
convivência social. Além disso, uma sociedade dominada pelo fator econômico
como nunca antes se dera em toda sua história, desvaloriza o próprio ser humano
sempre que esteja em jogo uma maior produtividade e lucro. A vida humana vale
cada vez menos e se torna mesmo para alguns uma mercadoria como outras.
O objetivo da reforma eclesial de
Francisco é resgatar o projeto do Reino de Deus pelo qual Jesus Cristo lutou e
deu sua vida. Aceitar a soberania de Deus na própria vida é colaborar no
projeto original de Deus para a humanidade, a saber, fazer de todos, homens e
mulheres, uma só família vivendo na fraternidade e na paz. Portanto, como Jesus
de Nazaré, fazer o bem, diminuir o sofrimento humano, promover o perdão mútuo,
a reconciliação, a convivência social, a justiça e a paz, propagar o sentido da
vida, a esperança cristã, a experiência gratificante de ajudar os outros, numa
palavra, viver realmente o núcleo da fé cristã, a saber, amar a Deus no amor efetivo ao próximo (Mt 25, 31-40). Tenhamos
presente que tudo o que a Igreja nos oferece em doutrinas, celebrações, normas
morais, práticas religiosas, testemunhos de vida, só tem sentido enquanto nos
fazem viver, de fato, a caridade: são meios, não fins. Pois a fé cristã,
devidamente entendida e vivida, sempre nos leva ao autenticamente humano, já
que esse último se manifestou plenamente na pessoa de Jesus Cristo conforme nos
ensina o Concílio Vaticano II (GS 22).
Consequentemente nossa contribuição à reforma
de Francisco não pode consistir apenas em aplausos e entusiasmos, mas exige de
nós repensarmos nossa mentalidade e nossas práticas como católicos, pois de
nada adiantarão mudanças estruturais se não nos mudarmos interiormente numa
conversão efetiva, embora sempre em processo, de nossa existência cristã. Pois
nela talvez encontremos concepções, práticas, hábitos herdados do passado que
não resistem a um confronto com o Evangelho.
Afinal, a que Deus nós invocamos? Estruturamos realmente nossa
existência pelo que foi mais marcante na vida de Jesus Cristo? Temos
consciência de que vivemos continuamente iluminados e fortalecidos pelo
Espírito Santo agindo em nosso interior? Experimentamos pessoalmente a fé como
uma opção livre, como um ato de confiança no mistério que chamamos Deus?
Sentimo-nos diferentes na atual sociedade pelo fato de sermos cristãos? Somos incomodados e sofremos também com os
sofrimentos alheios? Sabemos ver nos necessitados e carentes seres humanos chamados
à vida por Deus, de igual dignidade que nós? Resistimos de fato à pressão do
individualismo reinante na atual cultura? Contribuímos, movidos pela nossa fé e
dentro de nossas possibilidades, a humanizar mais a sociedade? Conseguimos
suplantar um catolicismo limitado a práticas e devoções que não perturbam nossa
vida familiar, profissional e social?
Sem dúvida caminhamos para uma
Igreja mais simples, mais despojada, mais frágil, menos poderosa, menos
imponente, menos glorificada. Uma Igreja mais parecida com a dos primeiros
cristãos, menos numerosa, porém com membros mais autênticos, com testemunhas
vivas do Evangelho, que deixam mais eficazmente transparecer em suas vidas a
força de Deus que os anima, a pessoa de Cristo que plasma suas biografias, a
esperança de uma existência plenamente feliz em Deus que já tem seu início, embora
imperfeito devido à condição humana, na história da humanidade.
O papa nos pede que saibamos
ousar, acolher o novo, confiar no Espírito Santo, nos desinstalar de nossas
rotinas. Naturalmente só poderemos aí chegar pela força que vem de Deus. Daqui
a importância de saber “experimentar” esta proximidade do Deus revelado por
Jesus, Deus de amor e misericórdia. Daqui também o cultivo da dimensão mística
de nossa fé no silêncio, na oração, no perscrutar contínuo da presença ativa de
Deus em nosso cotidiano. A reforma de Francisco não é só dele, pois nos convida
a vivermos com maior profundidade e autenticidade o que professamos. E ele
conta não somente com nossas orações, mas também com nossa ajuda. Todos nós somos
Igreja, portanto todos nós estamos comprometidos com a missão de anunciar a
mensagem do Evangelho. A missão de Francisco é também nossa missão.
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